João Mário

Eu demoro muito tempo a idealizar uma paisagem, por vezes um ano. Por que eu vou (ao local) de verão, de inverno, na primavera, no outono, às três da tarde, de manhã, ao lusco-fusco… e depois pinto o quadro na cabeça. E quando o vou passar à tela ele já está feito. Eu só estou a pôr com as mãos aquilo que eu tenho na cabeça… e sou muito rápido. Pinto sempre muito rápido.

Transcrição:

JM: Nós, os pintores, temos o hábito de trocar obras uns com os outros." Toma lá esta minha, deixa cá ver uma obra tua".

Recordo-me eu, tinha duzentos e muito poucos, à volta de 200 quadros em casa. Mas já nem todos na parede. Porque já não tinha espaço para ter aquilo tudo na parede e uns já estavam debaixo da cama, outros em cima do guarda-vestidos e não sei quê... passaram para mil. Mil que não cabem já aqui em casa. Aqui no museu cabem 800, à volta disso, e nós temos 200 em acervo. Mas os outros vamos substituindo até para contemplar e não desmoralizar todos aqueles que têm a amabilidade de trocar quadros comigo e depois chegam cá e: "Eh pá, onde é que estão...?” - isto já tem acontecido - "onde é que está o meu...?”. Às vezes até acontece ter-se mudado na semana seguinte e eu tenho que dizer: "eh pá, se tivesses vindo uma semana antes tinhas visto o teu quadro, mas dentro de três ou seis meses, está cá outra vez o teu quadro e tal". E assim se apresenta ao público os mil quadros.

Temos aquela primeira sala que é a sala de entrada, que nós chamamos sala de exposições temporárias. Não me envaidece, mas dá-me algum orgulho. A maior parte das pessoas chegam aqui:

- "Ah, Sr. João Mário, como está, passou bem?"

- "Então, hoje, o que é? O que é hoje?"

Nem sabem o que é. Vêm porque sabem que é bom. Foi bom, ter-se feito um museu. Ter-se construído o museu porque como lhe digo, como disse a princípio, isto não era para ser museu. Era para ser um ateliê. Uma galeria vá lá, digamos assim, de coleções de museus.

Eu não vendo aqui quadros. Não quero que digam: "Ah, espera lá, já vi para que é que fizeste aquilo". Não, eu não vendo aqui quadros. Aqui não se vende arte de espécie nenhuma.

 

O meu mestre pintou... isto, eu ainda não pintava. Só desenhava. Não tinha a coragem de pintar, só desenhava. E eu desenhei exatamente no mesmo local. Eu desenhei e ele pintou. E o outro dia, descobri aquilo e pus ali.

JB: Ele era muito bom.

JM: Oh, um desastre...

 

O primeiro quadro que eu pintei na rua que, na minha opinião não tem atmosfera, não tem oxigénio, não tem perspetiva, não tem cor. Está tudo quase da mesma cor. O segundo, que já estava assim mais ou menos... E o terceiro que já é aceitável.

E este também está aqui há uma semana, que foi o primeiro quadro que vendi.

… eu expus este quadro. Tive um prémio que me deu o Presidente da República de então, o Craveiro Lopes. Pá, fiquei excitadíssimo. E, então, disse "vou ser...". Porque eu estava na dúvida, arquiteto ou pintor. "Vou ser pintor!"

Depois, a certa altura, comecei a pintar a pincel. A certa altura comecei a pintar á espátula. Aqui se vê a grande diferença entre um e outro. Uma pintura mais livre, mais libertada, mais... menos pormenorizada e tal.

Eu pinto a óleo, especialmente a óleo. Eu pinto muito pouco a aguarela. Quase não pinto a aguarela. Pinto a óleo e com tendência especial para a espátula. Gosto muito de pintar á espátula.

Eu demoro muito tempo a idealizar um quadro. Eu lembro-me.… uma vez, estava a pintar o Guincho, em Lisboa. Em Cascais. E durante quase um ano inteiro, eu fui lá quase todos os... Não, quase todos os meses, não. Mas fui lá seis, sete, oito vezes. E lembro-me uma vez, a minha mulher diz, diz-me: "Eh pá...". Meteu-se no carro, aquilo e: "Eh pá, não me digas que vamos outra vez ao Guincho?!". Porque eu ia... eu vou de verão, de inverno, na primavera, no outono. Às três da tarde, de manhã, ao lusco-fusco.

E depois pinto o quadro na cabeça. E quando o vou passar à tela, ele já está feito. Eu só estou a pôr na tela, com as mãos, aquilo que eu tenho na cabeça. Mas, se mesmo nessa altura, já o tendo construído na cabeça, eu não sou capaz. Eu não estou bem disposto, não me sai bem.

Muita dificuldade. Mas, mesmo muita. É total. Dificuldade em pintar algo pela fotografia.

 - "Eh pá, gostava que você pintasse assim, assim. É a minha casa em tal parte."

Não sou capaz. Tenho que lá ir, tenho que viver, tenho que respirar aquele, aquele... E, portanto, eu não sou capaz de fazer isto por postais ou por... tenho que fazer, por exemplo, este aqui. Apontamentos de viagem.

 

 - "Eh pá, escolhe lá isso depressa e tal". E ele escolheu, com ar assim um bocadinho azedo para comigo. E deu-me o postal assim um bocadinho: "Pronto! Tome lá este, meu chato." Eu pintei com uma certa rapidez. E quando eu acabei de pintar, ele diz:

 - "Ai, e tal, mas tanta pressa, tanta pressa... que isto ia demorar muito tempo... Afinal, fizeste isto num instante. Ainda por cima, estive eu a reparar e só olhaste duas vezes".

E, antes que eu desse uma resposta, ele disse-me:

 - "Ah não, espera, espera aí. Não, espera lá, espera lá. Desculpa, desculpa, desculpa. Tu é que tens razão. Olhaste duas vezes, tens razão! É porque se estivesses só a olhar, estavas a copiar. E tu, como és artista, tens que criar. Não tens que estar só a olhar, tens razão, tens razão."

 

 

E Alenquer, acho.... Acho um encanto! Eu incluo-a entre as dez melhores localidades do país para se pintar. E porque... todos os cantos ou a maioria dos locais são pictóricos.

O Convento de S. Francisco, de 1573. Lá em cima. Esse tem que entrar quase sempre. Tem que entrar quase sempre. Mas lá em cima, temos o bairro da Judiaria que também é muito interessante.

Temos uma, duas, três, quatro, cinco, seis. Seis igrejas. Todas, todas... arquitetonicamente, muito bonitas. Por fora.

Temos os claustros, também lá de S. Francisco.

E mesmo esta parte de baixo da Vila, do rio.

 

Eu não sou muito fotográfico, quer dizer. Por acaso, aquela árvore, aquele jacarandá era mesmo azul. Mas, se me desse melhor aquela árvore, se ficar num tom e vai vê-la ali num outro quadro, que tem uma cromática mais amarelada.

Eu disse-lhe: "Não. Esta árvore, eu não posso ter aqui o jacarandá. Então a árvore está amarela.

Portanto, eu não sou muito fotográfico. Ou nada.

É claro. Se... E estes casos têm acontecido: "Eh pá, ó Sr. João Mário e tal, vou deitar abaixo o palacete lá da minha quinta, mas gostava de ficar com o quadro..."

Então, vou lá á quinta e faço... se são cinco janelas, não ponho quatro. Agora, numa paisagem normal, por exemplo de aqui de Alenquer. Mais outra história que eu vou contar. Uma vez, um senhor... um rapaz, ainda era novo. Pode ser meu filho. Podia, na altura. E agora, também pode. Ele está vivo e eu também. Comprou-me um quadro aqui de Alenquer, visto ali da estrada. Passado uns tempos, eu perguntei:

 - "Então? O quadro e tal?" - "Ah, pois, bestial. Eu tenho um orgulho de ter aquilo. Mas, ouça lá, eu fui lá no... o quadro, levei o quadro debaixo do braço. Fui lá. Eh pá, mas há casas que têm cinco janelas e o senhor pôs quatro. A torre da igreja, tenho impressão que está um bocadinho mais alta que o que ela é.”

Eu disse: "Eh pá, você... Eu não sou máquina fotográfica!"

- "Ahhhh, pois quer dizer, isso é que é arte.

- "Então, pois... eu não sou máquina fotográfica. Aquilo é a maneira como eu vejo um quadro bonito."

Evidentemente, se me disserem "faz o Rossio" e eu disser... ou "faz o Terreiro do Paço", e me disserem: "Eh pá, mas o D. José lá na estátua, isso não fica capaz". Isso não. Mas de resto, o supérfluo. O essencial, evidentemente que fica. Mas o supérfluo... aliás, é o essencial que torna o motivo atrativo. É o essencial que me emociona!

 

- "Anda sempre a ir aos museus e ela chora, chora..."

- "Mas, porquê?"

- "Sabe porquê? Porque ela entra - quando é qualquer tipo de pintura que lhe diga alguma coisa, ela entra dentro do quadro e está a viver o sítio, o local. E, pois, nós moramos aqui e ela agora viu a casa dela e ficou..."

Fui buscar um copo de água. A senhora lá bebeu a água e tal. Melhorou. Já estava tudo aqui parado, de volta da senhora: "Ah, veja lá..." A abanarem assim... Quando a senhora melhorou - e agora aqui é que é a parte gira:

 - "Então, minha senhora, já sei que se emociona. A sua sobrinha já me disse..."

- "Ai, sou uma desgraçada, uma parva nisto e tal. Eu reconheço, eu reconheço. Faço mal, mas... sou parva, mas… mas eu vou contar ao senhor a razão porque é que aqui me emocionei mais." - eu vi logo o que era - "Aqui eu me emocionei mais. Fiquei mais emocionada e porque... Isto, eu conheço muito bem esta zona. Nós moramos aqui perto. Eu vou-lhe dizer onde é que eu moro. Eu moro... Ó Felisberta, deixaste a luz do meu quarto acesa?!”

Não é poesia, não é teatro. É a verdade. Porque a pintura é interior. É interior.