Era
uma vez…
Há
muito muito tempo…
Algures numa cidade portuguesa, seres mágicos hipnotizavam, contando
histórias, todos aqueles que com eles se cruzavam.
Uma
jovem mulher estava entre aqueles que tropeçaram nesses seres e ficou cativa
dessa
espiral de histórias. Com outros afortunados, ela mergulhou num tempo sem
tempo. Ou talvez fosse um lugar onde todos os tempos existiam, juntos… Um lugar
sem lugar que continha todos os lugares.
Aquela
mágica experiência nunca a abandonou, mas ficou mais ou menos perdida dentro de
si.
E
porque as pessoas são feitas de outras pessoas, do que vivem, escutam, veem,
leem…há memórias que voltam quando menos se espera, mesmo quando as vidas
acontecem noutros sítios e cronologias.
O
tempo passou e a jovem mulher deixou de ser jovem e faz hoje parte de um
projeto também ele mágico - as Comédias do Minho. E porque “Nenhum bem há cuja
posse não partilhada dê satisfação”, as CdM convidaram aqueles seres a
deslocarem-se ao Minho e com eles trazerem a sua magia a estes territórios, convocando
a magia que aqui há.
Uma
parte do espanto criado decorre de estarmos juntos. De confiarmos. E de
voltarmos, à maneira de uma criança, a libertar a nossa imaginação e a
acreditarmos no “Era uma vez…”
Há
quem diga que quando deixamos de ser crianças morremos. Aproveitemos, assim,
para exercitar a vida.
Uma roda: entre histórias resulta de um convite feito pelas Comédias do Minho à Memória Imaterial para
que juntos pudéssemos construir um espetáculo onde as práticas dos contadores
de histórias se encontrassem com as práticas dos atores da nossa Companhia.
Quisemos
reforçar e ampliar a escuta e a representação de vozes do território. Para tal,
recolhemos histórias contadas por pessoas diversas e gerações variadas. Algumas
destas histórias, juntamente com outras, fazem parte do espetáculo.
Da
recolha das histórias, dos ensaios e da apresentação do espetáculo vai ainda
resultar um documentário que circulará, entretanto, pelas vilas e aldeias dos
nossos cinco municípios e ainda para além deles.
Porque
a arte faz-se, também, para ampliar a medida dos nossos mundos e desestabilizar
a nossa frequentemente acomodada perceção, a escolha das histórias e o modo
como se contam importam.
Junte-se
à roda!
Magda Henriques
Direção Artística das Comédias do Minho
O que pode acontecer quando juntamos expressões orais tradicionais, coisas que nos correm sob a pele desde que nascemos, com os imensos recursos performativos de atores empenhados em devolver estes contos e cantos às comunidades detentoras?
Esta é a pergunta que fez embarcar a cooperativa Memória Imaterial no desafio lançado pelas Comédias do Minho.
Iniciámos com um breve mapeamento da tradição oral nos concelhos de Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira.
A partir daqui começou a aventura de escolher o que contar, como contar, como urdir esta tapeçaria delicada que nasce dentro da cabeça de cada ator mas que se estende até à imaginação de cada espetador? O resultado é este espetáculo feito de histórias contadas por atores que se transformaram em narradores que nos voltam a falar de serpentes, beijos roubados e seres estranhos, que nos devolvem o prazer de estar numa roda partilhando mundos.
Desde o aparecimento dos primeiros etnólogos em Portugal que se vaticina o fim do mundo das expressões tradicionais orais. Leite de Vasconcelos adivinhava que esta memória coletiva antiga iria ser destruída pela modernidade e que era urgente recolher, inventariar todo um corpus de contos, cantos, saberes e rituais que, na sua opinião, constituíam o cerne da alma portuguesa. Este espírito de salvaguarda evoluiu. Hoje sabemos que todo este mundo ancestral continua dentro de nós, de todos nós, independentemente da nossa origem. Sabemos que é algo universal, que define esta coisa estranha de se ser um animal que tem alguma consciência do mundo, que mantém uma memória, que utiliza uma prodigiosa quantidade de recursos pessoais para recriar mundos dentro de si, para viajar no tempo e no espaço com a imaginação para comunicar com os seus semelhantes. Contam-nos uma história que aconteceu em Castro Laboreiro, mas essa história é recontada um pouco por todo o mundo e aconteceu em cada comunidade com mais ou menos variações. E, por vezes, conseguimos perceber que este conto onde se falam de mouros e princesas já tinha sido registado na mitologia da Grécia clássica, que provavelmente o importou da Ásia Menor e que surgiu (pela primeira vez ?) entre as comunidades africanas que ofereceram o mundo à humanidade.
Sim, parte deste mundo tradicional morreu. Mas como em todos os processos naturais, nada morre tudo se transforma. As histórias continuam vivas, transformando-se, adaptando-se aos tempos, como sempre.
E que tem isto a ver com este espetáculo? Tem tudo. Porque os narradores tradicionais vão desaparecendo mas os mundos que eles representavam continuam por aí no ar, buscando novos narradores, novas formas de contar que lhes deem voz e novas audiências que os escutem e recontem. E esta feliz iniciativa pode ser um momento, uma resposta, que volte a dar uma casa a todas as histórias extraordinárias que nos acompanham desde sempre.
José Barbieri
Memoria Imaterial CRL