O fundador da reputada comunidade global de desenhadores urbanos é um jornalista e ilustrador, Gabriel Campanario, sediado em Seattle. A sua fundação, em 2007, está associada ao início de um fórum online, criado por Campanario, com a intenção de congregar todos os desenhadores que prezam desenhar a cidade e as cenas de vida quotidiana, observadas a partir de um determinado ponto de vista (janela, parque de estacionamento, esquina). Em 2008, Campanario convida uma centena de desenhadores urbanos a partilharem os seus desenhos e as suas histórias no seu blog Urban Sketchers. Com o desígnio de «Mostrar o Mundo, um Desenho de Cada Vez» (no original: «See the World, One Drawing at a Time»), o referido blog proporcionou visibilidade à comunidade e inspiração a todos os entusiastas do globo pelo exercício do desenho no espírito do manifesto do movimento. Em 2009 é reconhecido a esta comunidade alargada o estatuto de organização sem fins lucrativos.
A valorização de um desenho à mão livre, analógico, enquanto testemunho e mnemónica pessoais, tem uma significação inegável – sobretudo, em contextos de acessibilidade generalizada a aparelhos de visão, a registos fotográficos e videográficos, ou ao desenho por computador. O ato de desenhar o que se observa in loco solicita uma imersão lenta do desenhador no lugar em que vive ou para o qual viaja. A vivência e a experiência corporal do ambiente multissensorial possibilitadas pelo desenho, coloca o desenhador (viajante) numa posição orgânica e dialogante com as pessoas que encontra. Uma atitude que contrasta com a de um operador de imagens técnicas, cujas máquinas – garantindo, ilusoriamente, uma visão objetiva, sem mediação humana – facilitam uma atitude de distanciamento e separação do que se passa em redor. Comparativamente, andar, ver e desenhar, é uma forma de resistência à voracidade consumista de sítios e um modo de viver o tempo integral da viagem.
. Por esse motivo, o desenho[v] pode
constituir um antídoto eficaz contra a generalizada e desregulada gula
visual, estimulada pela abundância de tecnologias visuais.
Muitas vezes, realizado em cadernos portáteis, o desenho (proporcionando o conhecimento por via visual) vem eventualmente acompanhado de outros meios / tipos de representação: um texto escrito, uma nota sobre a história de um lugar ou uma data. Sempre atento ao que o rodeia, o desenhador (obsessivo) desenha para não esquecer o que vê[vii]. Acrescenta, aos próprios desenhos, inscrições: descrições e comentários sobre o tema ou assunto.
Em termos de metodologia, o desenho é realizado, frequentemente, em várias (três) fases: observação; registos (desenhando o que se tenha visto) e, finalmente, acabamento (recorrendo à memória ou a uma fotografia) ou reconstrução (imaginando a partir de uma anotação gráfica, desenhando o que deveria ser).
Por ser um objeto íntimo, o caderno portátil – diário gráfico ou diário de viagem – é o lugar de experimentação com variadas maneiras de registo, modos de representação e materiais.
Embora a prática de desenho designada de Urban Sketching (com raízes no passado, recente e distante) tenha sido inicialmente popularizada através de livros, a internet e as redes digitais permitiram a criação de uma comunidade global com ramificações regionais[viii].
Para além dos propósitos de divulgação e pedagogia, o movimento internacional de urban sketching socorre-se de redes sociais online, simpósios[x], livros e revista online mensal Drawing Attention para reforçar a identidade e os laços de solidariedade (e, suporte afetivo) entre a comunidade de desenhadores, nacionais e estrangeiros.
Estas ferramentas potenciam a visibilidade dos resultados dos eventos de desenho, bem como as possibilidades de contacto e comunicação entre os diferentes praticantes. Cada desenho partilhado nas plataformas das redes sociais proporciona ao espectador (visitante: desenhador – profissional ou amador) um vislumbre de histórias, vividas e visualmente contadas, de um lugar. Peça de reportagem visual a olho nu, cada desenho é o momento da história de um viajante, apreciando atentamente o que o rodeia e deambulando através do desenho[xv].
O sucesso do movimento urban sketching deve-se, também, à valorização dos aspetos relacionais associados à experiência coletiva do desenho num dado sítio: a promoção de um sentido de comunidade ou elo relacional entre todos os desenhadores (iniciantes ou veteranos); a convivência solidária entre os participantes, independentemente do grau de habilidade e experiência, conforme a um espírito de partilha e integração[xvii]; a promoção de um sentido de pertença a uma espécie de irmandade do desenho, na qual o desenho é entendido como (poderosa) ferramenta de ligação informal[xviii] com a formação[xix]; um modo de socialização entre desenhadores e desenhados.
A pretexto do desenho, convive-se desenhando ou, nos intervalos, vê-se desenhar, aprendendo com os seus pares. A experiência do lugar – sensorial e afetiva – estimula e suporta a experiência (pessoal e coletiva) do desenho. A frequência dos encontros reforça o gosto de desenhar, possibilitando o aperfeiçoamento pessoal do desenhador e uma aprendizagem de síntese.
A pandemia do novo coronavírus (COVID-19) trouxe desafios e contrariedades aos intentos programáticos da comunidade Urban Sketchers. A experiência individual em tempo de lockdown ficou limitada às dimensões da habitação e emoldurada por janelas estreitas. Sob um contexto de isolamento e confinamento sanitários, os encontros presenciais são suspensos e, em grande medida, são substituídos por encontros online, nos quais os objetos a desenhar passam a ser as suas imagens fotográficas (usando ou não o GPS) e, os lugares a visitar, as imagens disponibilizadas pelo Google Maps.
Os encontros em contexto urbano são substituídos, também, por caminhadas em zonas rurais, onde a etiqueta sanitária poderia ser, confortavelmente, respeitada.
A prática do desenho de visu ao ar livre requer a coragem de se desenhar no espaço público. Rodeado de transeuntes, apressados, ou de curiosos, o desenhador está minimamente disponível para sofrer alguns estorvos e canseiras. Se, reconhecidamente, a atmosfera coletiva de entusiasmo e amabilidade proporciona a libertação (desinibição) e inspiração necessárias a cada amante do desenho, a relação do desenhador com os curiosos pode tornar-se indesejavelmente inibidora. Em certas ocasiões, o desenhador vê-se forçado a recorrer a algumas estratégias defensivas.
Tendo em consideração as condições precárias desse exercício para se mover e desenhar, qualquer Urban Sketcher respeita os princípios de portabilidade, leveza e funcionalidade do equipamento e dos instrumentos de desenho. Move-se para estudar (e escolher) o melhor ângulo de visão (o que quer focar e como representar); ensaiar algumas composições. Desenha rápido. Na falta de tempo, adiciona a cor, mais tarde e fora do local em que o desenho é realizado.
O prazer do desenho motiva o desenhador a deambular sem um itinerário marcado ou a deslocar-se a um dado lugar, conhecido ou desconhecido, próximo ou longínquo. Desenhar, em união com a paisagem e as pessoas em redor, é viver momento a momento no presente, contestando o nosso presente hiperligado e o tempo hiperactivo. O esforço físico de ir a um local para registar aspectos e acontecimentos, vistos com os próprios olhos, contraria a «presunção de omnisciência inspirada pela Internet» (Theroux 2021, 13).
O praticante de urban sketching escolhe, prioritariamente, as paisagens urbanas (e as cenas do quotidiano em ambientes citadinos) como objetos para desenhar, a partir de um ponto de vista determinado. Por pouco descritivo ou objetivo que seja, cada desenho enquanto registo pessoal do tempo e do espaço remete-nos para uma série de recordações: além de aspectos de um lugar – as sensações e perceções de um território físico, real, tangível, processadas mediante uma linguagem visual pessoal –, a lembrança da situação do desenhador (encontros e experiências próprias) e a da circunstância do desenho (tempo preciso, fixado).
O século XX é marcado por uma ausência de pintura de paisagem enquanto género[xxviii] e, concomitantemente, por uma apreciação autónoma da paisagem, resultante de uma maior facilidade de acesso direto à natureza. A experiência moderna da paisagem não é regulada pela conceção vedutística da paisagem (i.e. redutora da paisagem a uma vista)[xxix]. A arte deixou de ser entendida como um espelho da natureza. Doravante, a representação específica de uma determinada paisagem pode constituir um ponto de partida (e não de chegada) profícuo para aquele que estiver disposto a conciliar as exigências decorrentes de se pintar o natural com as possibilidades abertas por toda a arte experimental do século XX e XXI. A tarefa é precária, mas potencialmente libertadora – estabelecer uma correspondência entre a totalidade das relações criadas pelas marcas na tela e as que se podem deduzir da paisagem. Nessa medida, importa então sustentar um olhar que vai e vem entre a paisagem e as marcas sobre a tela. Pintar o natural, no local, implica, por um lado, ser-se fiel ao objecto observado, conforme a um processo constante de verificação, correcção e análise do que pode ser visto e do modo como se altera ao longo do dia – processo pelo qual se pode descobrir formas e estruturas demasiado complexas e variadas para serem inventadas ou reconstruídas com base em recordações. Implica, por outro lado, consciente da independência das marcas da tela, estar-se atento ao processo de construção do quadro, numa avaliação cuidadosa da sua lógica e necessidades.
Poderíamos pensar nas paisagens pintadas por David Hockney, Leon Kossoff, Frank Auerbach[xxxii] entre outros. David Hockney pinta a partir da natureza, encantado com a inesgotável beleza do mundo visível. ‘Inesgotável’, porque – como afirma – unicamente as imagens da natureza cansam.
Gonçalo Ribeiro Telles fala do homem como um «animal de passagem permanente» [e da paisagem como] um «teatro que [o homem] cria e que vai vendo crescendo, que vai desenvolvendo, defendendo, que vai construindo e emendando». A paisagem é o reflexo de um conjunto amplo de relações entre seres humanos e ciclos naturais. As características de uma paisagem cultural são continuamente determinadas por padrões comportamentais (humanos e de outras espécies) e espelham um modo de compreensão das relações complexas e integradas entre espécies, lugares e condições ambientais (Roe e Taylor 2014, 3).
A paisagem deriva de um processo integrado e evolutivo de uma série de interações de uma dada sociedade / cultura (agente de mudança) com um dado ambiente (meio) natural. Enquanto realidade processual, ela muda sempre como sempre aconteceu e acontecerá por intermédio da conjunção de processos naturais e de práticas humanas.
Rural ou urbana, a paisagem é a cena ubíqua em que decorre a vida de cada indivíduo e acontece, na passagem diária por ela, a confluência com tantas outras vidas em trânsito, movidas por uma multiplicidade de afazeres. Moldámo-la e, por seu turno, somos moldados por ela.
A individualidade de um lugar singular é constituída por um aspeto estético determinante – um traço saliente da identidade local. Um requisito que caracteriza e fixa a identidade estética de um lugar, a paisagem daquele lugar[xxxiv]. A identidade estética de um lugar é o resultado da interação de três elementos, copresentes na paisagem: a natureza, a cultura e a história[xxxv]. O significado de um lugar nunca pode ser reduzido aos simples dados físico-naturais ou biológicos (ambiente), embora os conhecimentos biológicos, geográficos e ecológicos sejam relevantes para a perceção da identidade estética de um lugar.