"...foi muito tempo, só, sentada a ouvir. E aí, mudou tudo. Mudou toda a perceção que eu tinha para trás do que eram as histórias ou do que poderiam ser. Descobri um mundo imenso e mudou a minha vida toda. O meu interesse todo. Eu não decidi imediatamente que queria contar histórias."
Transcrição
LCC - Luís Correia Carmelo
ASP - Ana Sofia Paiva
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LCC: A primeira vez que eu te vi contar foi lá em Campo Benfeito em 2008, com o Ricardo [Santos Rocha], a “Cegarrega dos bichos” e já era contar, e já eram textos de inspiração tradicional, ou alguns tradicionais e outros de inspiração tradicional. Muito antes de tu descobrires essa coisa da narração oral e de entrares nesse circuito. Portanto, já havia esse interesse por este tipo de repertório, por este tipo de imaginário. E a primeira pergunta seria: de onde é que vem esse interesse? Porquê este apelo desse tipo de imaginário?
ASP: Muito antes de saber o que era narração ou de ter ouvido um contador de histórias foi mesmo por, e sendo urbana, por inspiração familiar. Os meus dois avôs contavam algumas histórias e na escola primária também trabalhei muito o imaginário tradicional e, portanto, sempre estive, em termos de universo, muito próximo a…. Esse espectáculo, a “Cegarrega dos bichos”, tinha muitos textos do Torga, muitas lengalengas e cantigas. Portanto, sempre foi… mesmo depois no teatro sempre procurei fazer, chegar perto deste universo, mesmo. Mas não sei explicar muito bem porquê. Acho que é por afinidade, memória afetiva, mesmo. Acho que é isso.
LCC: E foi esse mesmo interesse, foi essa mesma memória que te levou a… Como é que foi a experiência de trabalhar como transcritora para CEAO [Centro de Estudos Ataíde Oliveira]? Como é que isso aconteceu e depois de que maneira é que isso informou o teu repertório de contadora? Como é que isso te influenciou? Aquelas horas todas a ouvir e a transcrever?
ASP: Isso foi totalmente por acaso. Eu não andei à procura... Quando construí esse espetáculo, era um espetáculo com texto decorado. Tinha um conto que era livre, portanto, que o texto não estava decorado, o resto estava memorizado… Eu chegar ao Arquivo e a ser transcritora não foi porque eu andei à procura de perceber o que eram os contos tradicionais. Foi um tropeçar. Por pesquisas que estava a fazer na altura. Eu queria perceber melhor o universo das histórias que estava a trabalhar. Tinha vontade de estudar, de parar, de deixar um bocadinho o teatro e de dedicar-me a outra coisa. E, foi por acaso que encontrei o Instituto de Estudos de Literatura Tradicional na altura, que agora é, de Cultura e Tradições. E foi por acaso que encontrei e descobri o que era, fui visitar… Nesse ano, abriram bolsas. Eu não sabia ao que é que ia quando ganhei a bolsa para transcrever. Não fazia a menor ideia que existia um Arquivo do Conto. Não sabia ao que ia, mesmo. Não sabia o que é que iria implicar em termos de trabalho diário. Mas, interessava-me estudar. Queria parar, queria fazer um ano dedicado a outra coisa. E foi completamente sem querer. Quando aconteceu explicarem-me, quando ganhei a bolsa e aconteceu explicarem-me que ia transcrever as recolhas, primeiramente feitas pelo António Fontinha, que eu não fazia ideia de quem era, foi tudo uma surpresa. E, depois foi muito tempo, só, sentada a ouvir. E aí, mudou tudo. Mudou toda a perceção que eu tinha para trás do que eram as histórias ou do que poderiam ser. Descobri um mundo imenso e mudou a minha vida toda. O meu interesse todo. Eu não decidi imediatamente que queria contar histórias. Em nenhum momento. Aliás, na época, troquei muitos emails com o António para fazer algumas perguntas porque o António, tem, tinha… guardou o diário de ouvidor que acompanha as recolhas que ele entregou ao Arquivo e, portanto, eu ia descobrindo algumas coisas dos contos, comparando com as notas de campo. E, às vezes era necessário fazer-lhe perguntas e eu tinha… a minha intenção era fazer um bocadinho aquilo que ele tinha feito. E escrevi muitas vezes ao António: “como é que eu faço, como é que eu vou fazer a recolha? Estás a fazer algum projeto? Posso…?” E tentei. E o António disse-me sempre que o caminho não seria ir por aí. Que eu deveria contar. Recontar…. Mas, inicialmente, a minha decisão, quando descobri o Arquivo e comecei a transcrever, foi dedicar-me a procurar aquelas histórias. A desenterrar… E a descobrir. Portanto, só muito mais tarde é que aconteceu... foi acontecendo. Por tua causa, também.
LCC: E como é que isso foi acontecendo?
ASP: Por me convidarem para contar em alguns contextos e eu perceber a dimensão do que era o universo da narração. Ouvir outros narradores. Nunca tinha ouvido. Perceber que havia todo um circuito de gente, de pessoas muito diferentes. E, foi assim. E passou a fazer parte do meu trabalho... Sempre ligada, porque a bolsa foi renovada algumas vezes, eu fiquei sempre ligada à transcrição. Até bastante tarde. E à medida... E tomei sempre essa como a minha base. Era isso que eu queria continuar a fazer e que continuo a fazer, de outra maneira. Mas tomou conta a atividade de narradora. Foi uma coisa que foi acontecendo devagar e pela mão de outras pessoas.
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LCC: E o teu repertório de narradora, apesar de ter muito material poético às vezes e ter outras coisas, é marcadamente, uma grande maioria, suponho, de tradição oral, não é? As tuas fontes vêm de onde? Usas muito o catálogo? Usas muito o arquivo? Como é que…?
ASP: Só uso o Catálogo, o Arquivo e outros catálogos e outros arquivos que vou descobrindo. E outras bibliografias. Mas, quase 100% do meu repertório é tradição oral. Não, por acaso não me recordo de algum conto que tenha montado a partir de um autor. O que fazia antes, o que fiz antes, não voltei a fazer. Ou, se fiz, foi pontualmente com algum pedido de alguma instituição. Mas não entra assim propriamente no repertório ativo. Portanto, a minha base é todas as recolhas que tenho e que não foram feitas por mim. É a grande maioria. Depois as recolhas, poucas, que fui fazendo ao longo do tempo. E as várias versões que vou cruzando e que vou encontrando em diversas coletâneas e compilações. Às vezes são fontes escritas, outras vezes, fontes de recolha, vídeo ou áudio.
LCC: E fazes sempre um trabalho comparativo? Quando pensas que vai contar este tema ou aquele, como é que funciona o trabalho de…?
ASP: Sempre. Bom, quando chega uma história ou penso numa história que quero contar, ou encontro algum tema, vou à procura de todas as versões disponíveis e vou cruzando. Inicialmente cruzava apenas com as versões disponíveis no Arquivo. Portanto, versões contadas cá, recolhidas em Portugal. E, depois fui alargando para cruzar com… ou seja, procurar o próprio tema e cruzar com outras versões recolhidas por todo o mundo. Fui abrindo um pouco. E, depois as versões que eu conto já são uma espécie de cozinhado de bocadinhos de várias versões. Para a grande maioria dos contos que tenho, sei onde é que fui buscar cada coisa. Mas, há outros que não. Que vão ficando uma confusão que já não sei onde é que fui buscar ou se inventei eu. Às vezes baralho um bocadinho. Mas tento ser metódica para mim própria, para perceber onde vou buscar.
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LCC: Que necessidade é essa, que respeito é esse pelas versões da tradição oral? Estavas a dizer, para não inventar. O que é isso?
ASP: A gente inventa sempre, não é? A gente inventa sempre. Mas vai alterando a forma como lê os temas porque mudamos. Nós, internamente, mudamos. A nossa visão do mundo muda. A maneira como o conto é recebido. As questões que provoca ou não nas pessoas. O eco que faz. E, portanto, a gente cada vez que conta, inventa e não registo tudo o que inventei. Mas, em momentos em que eu não sei o que fazer ao conto. Não sei se o mantenho, se não o mantenho… está a dar um problema, de alguma forma, para eu me debruçar sobre ele, se eu não souber qual foi o processo que ele fez na minha boca, como diz o António, se não criar um registo disso, perco-me. E, para encontrar soluções para a frente, preciso de perceber o processo que fiz para trás. O que é que me interessou, porque é que eu fui buscar aquilo, que agora já não me interessa. Se posso tirar, se não posso. Se é parte estruturante do conto ou não é. Se é um adorno ou se é um osso inalterável, que não se pode mexer. A gente encontra isso comparando várias versões, não é? Partes que aparentemente, durante algum tempo, podem parecer um adorno e passado um tempo a gente percebe que não são. Que não são alteráveis nem podem viver à mercê das minhas opiniões do momento, que também mudam. Daqui a uns anos mudam.
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LCC: Trabalhas a partir de uma anotação, tens uma anotação da estrutura do conto. É um esqueleto, há partes que são mais fixas ou não? Como é que trabalhas a nível de guião?
ASP: O guião, eu trabalho tal e qual como aprendi a ler o Catálogo. Portanto, cada conto está dividido em um, dois, três, quatro, cinco. E cada 1, 2, 3, 4, 5 partes tem possibilidades a, b, c, d, e, f… portanto, o meu guião, por assim dizer, não é um guião porque às vezes eu sigo essas partes mas não tenho necessariamente de começar a história na parte 1. Às vezes posso-lhe dar a volta no contar. Portanto, eu trabalho cada uma das partes, que podem depois não ser contadas nessa sequência. E vou enchendo de informação. Inicialmente era um bocadinho mais metódica e tinha um caderno, um dossiê onde ia colocando as versões. Depois começou a ser mais caótico porque, como não me dedico só a isso e estou a contar ao mesmo tempo, vou perdendo e, portanto, tenho que cruzar muitos cadernos. Com notas que vou tendo de uns cadernos de uns anos, outros cadernos dos outros e, às vezes, fica tudo um bocadinho baralhado. Gostava, às vezes, de ter mais tempo, de parar para organizar o repertório que tenho em pastas e voltar a ser mais metódica. Vou olhando e depois, à medida que o tempo vai passando de vez em quando há coisas que acontecem, porque converso com um narrador ou porque ouvi uma versão diferente ou porque me cruzei com algum pormenor que me lembra aquela história e vou adicionando informação a cada uma dessas partes. Essa é a estrutura, assim, de trabalho que faço. Depois como é que eu vou contar, isso, não trabalho nisso. Nunca decido isso. Não cheguei aí ainda. Tenho ali uma panóplia de informação e depois vou contar. E conto como… é muito residual a informação que eu de facto utilizo da que está nos dossiês e nos cadernos. São coisas que acontecem no momento a contar, algumas coisas da minha pesquisa saem, outras não saem, outras nascem ali a contar, que eu nem sequer fazia ideia e depois vou perceber se acrescenta, se não acrescenta, porque é que foi. E, pronto, vou construindo assim.
LCC: E depois de esse primeiro momento de contar, portanto, partindo de esse esqueleto, de essa estrutura que tens, depois a primeira vez de contar, pode correr bem ou não, pode ficar ou não. Mas, conforme vais rodando o conto, há coisas que se vão fixando ou deixas sempre em aberto tudo? Qual o espaço de improvisação e de fixação em cada vez que se repete?
ASP: Pois, a nível de estrutura, de ordem, de sequência e de algumas escolhas, à medida que vou contando, vai ficando fixo. E quanto mais conto, mais isso acontece. Às vezes cristaliza. E quando começa a cristalizar, perde um bocado o sentido. Fico mais perdida. Há um tempo em que não, em que vou ficando mais segura e já sei, já antecipo, há coisas que há força de contar se vão memorizando. Mas, há sempre um momento, quando cristaliza, em que eu opto por pôr de lado. Às vezes não opto por questões de… não dá jeito. Porque é preciso ter mais repertório preparado. E, às vezes, por necessidade de contar, tenho que contar com aquelas histórias. E tenho que ter tempo para preparar outras. Mas, há sempre um espaço muito grande de – não sei se chame improvisação – de coisas novas que acontecem de cada vez que conto. Se contar regularmente sempre os mesmos contos, cada vez é menor o meu espaço de criação. É como se eu quisesse descobrir novas coisas a contar e não conseguisse. Porque tomam conta, a cabeça já está preparada para o que vem a seguir.
LCC: E isso para ti é um problema?
ASP: É um problema. Só durante um curto espaço de tempo é que não é um problema porque dá um prazer imenso a gente saber que controla. Eu saber que estou a controlar e que sei para onde é que vai e que funciona. Mas, dura pouco.
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LCC: Então, isto, o cágado, o teu cagadinho… essa tua variante, qual é a tua fonte?
ASP: A minha fonte é a única versão que temos desse conto, que se chama “Cagadinho caiu na panela”. Está nos contos populares da Adiça. E temos uma gravação áudio e a transcrição que está nos contos populares da Adiça. Foi recolhida nos anos 50, creio. Não… Nos anos 2000, a senhora é que era bastante idosa, em Vila Verde de Ficalho, creio.
LCC: E a tua fonte foi primeiro escrita, foi a gravação?
ASP: Foi a gravação, porque está no site do MemóriaMedia. Eu já tinha visto a transcrição no Arquivo do Conto. E a transcrição está feita, não sei como é que se explica, mas com… de cantar mesmo, o alentejano, é um bocadinho difícil de ler. E quando fui à procura de outras versões dessa história, encontrei a gravação.
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LCC: Há uma senhora que imediatamente: “ah, mas isso é o João Ratão”. Esse estranhamento que causa no público... pelo reconhecimento depois da fórmula, do cumulativo final... essa estranheza… há algum jogo relativamente a isso? Para ti, o que é que é isso?
ASP: É uma estranheza natural. Para mim, também existe essa estranheza porque é uma história em quase tudo igual, é que parece que só muda o bicho. Mas, como ela está classificada como um tipo diferente e eu já fui ler outras versões… não há em Portugal, em Portugal só temos esta, desta história que tem, que teria depois outras ramificações, não me incomoda. Até acho graça que seja uma versão da Carochinha, que para as pessoas seja uma outra forma de contar a Carochinha e que até possa estar a ser inventada por mim. Não me perturba isso. Como tenho claro que provavelmente poderão aparecer, no tempo, outras versões deste episódio. Por isso é que me dou também liberdade para construir a parte inicial de outra maneira e dar-lhe outros componentes, a relação da mãe com a filha, da pobreza e da riqueza, que não está na Carochinha.
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LCC: É uma sessão dura, com características duras, é na rua, não tens costas, tens a voz amplificada, com constrangimento de espaço, justamente pela questão da amplificação da voz. É uma sessão que põe todos os obstáculos logo desde o princípio. Isso amenizado pelo facto do programador, do Zé Barbieri, fazer-te... contextualizar o teu trabalho, a tua vinda, falar antes de ti. Ele enquadra aquilo que tu vais fazer. Mas, ainda assim, é uma sessão com desafios. Quais são esses desafios para ti?
ASP: Quais são esses desafios? De gerir a energia porque é uma energia completamente diferente. Normalmente, são sessões onde as pessoas, o público quer falar. E têm coisas para dizer. Sobretudo, se há uma introdução inicial que lhes diz respeito, não é? Neste caso, é sobre o lugar onde nasceram, onde viveram uma vida inteira, têm coisas para dizer. E também se sentem chamados, mesmo quando não se sentem chamados, já querem intervir. Mas, sentem-se chamados a participar. Por isso, é conseguir gerir a dinâmica da conversa, mas sem deixar de contar uma história e de atrair a atenção para a narrativa que está a ser proposta e para um outro plano de escuta em que eles possam só disfrutar. De gerir essa dinâmica, acho, que é o grande desafio. Para mim.
LCC: E está a correr bem, no caso?
ASP: Neste caso correu muito bem porque eu acho que eles foram muito generosos. Acho que foram até bastante generosas. Sobretudo, eram mais senhoras…. E permitiram, acho que perceberam, a meio, o jogo de relação que está a ser proposto e permitiram levar a história até ao fim. E acho que… às vezes não acontece assim. Às vezes é até ao fim uma luta e fica a história assim muito partida, em termos de energia, nunca, não se chega a ir ao fundo. E, aqui, aconteceu. Apesar dos ruídos.
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LCC: Na verdade esse conto funciona assim aqui nesta sessão como uma preparação para aquilo que tu vens de facto contar?
ASP: Sim.
LCC: E o que contas de facto, portanto, o conto central desta sessão é a tua “menina sem braços”, que é no nosso Catálogo “menina sem mãos”, que é um conto antiquíssimo, com várias variantes ao longo da história, não é? Desde os romances de cavalaria, Basílio, Irmãos Grimm, quer dizer, um conto muito difundido. Na altura da publicação do nosso Catálogo, tem perto de trinta versões, portanto, comparado com outros tipos, é um conto que tem presença. As duas perguntas que tenho é: de onde é que vem o interesse por esse conto, em particular? E qual foi a tua fonte?
ASP: A fonte foi... a verdadeira, que me fez começar a contar a história, foi tê-la ouvido. Recolhi-a uma bibliotecária, na margem sul, na Moita. E eu já conhecia de ouvir, não de ler, de ter ouvido alguns contadores.
PERFORMANCE
ASP: E esteve ali, banhando a menina nas águas do rio. E dizendo: “Nossa Senhora do Pranto, a minha mãe e madrinha, tanto lhe tenho pedido, guardai a minha filhinha. Nossa Senhora do Pranto, tem a porta de loureiro. Bem pudera tÊ.la de oiro, porque tem sempre dinheiro. Nossa Senhora do Pranto, é minha mãe e madrinha, tanto lhe tenho pedido. Guardai a minha filhinha.”
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LCC: Eu perguntava-te então, quais foram as tuas liberdades? Como o Paulo Correia falou… quando falámos do cagadinho, eu falei em variações… mas, agora lembrei-me daquele termo engraçado do Paulo, quais foram as tuas liberdades em relação às tuas versões-fonte? Nomeaste duas, principalmente. O que é que variaste nesses contos? Já falaste um bocadinho agora… Acentuaste determinados aspectos, mas quais foram as liberdades que tomaste para ti mesma e quais foram as liberdades que tomas na ação do contar neste contexto específico?
ASP: Na segunda história, não é? Na “Menina sem braços”. Muito poucas porque… e eram as que já estavam trabalhadas de trás. Trabalhadas em papel, nunca tinha experimentado. Que era a introdução da Nossa Senhora do Pranto, que não está na versão. Aliás, a Nossa Senhora do Pranto é uma lenda que vem das Beiras, creio. Uma Nossa Senhora que aparece no rio e tal. E fui... já tinha esse trabalho feito em dossiê, comigo, em estudo, porque a Nossa Senhora do Pranto perde um filho. Ela surge com um menino nos braços, que foi perdido no rio. E, portanto, já tinha isso como referência, isto casa com esta história, portanto, é bom colocar. E há uma reza. Nunca tinha utilizado com as crianças porque não fazia qualquer sentido esta informação. Outra liberdade que tomo é quando a menina, para salvar o filho, coloca as mãos no rio e canta. Isso, a mãe da bibliotecária cantava-lhe uma canção sobre o rio, que ela não se lembra, mas que acha que a mãe inventava e, portanto, eu coloquei umas quadras tradicionais. Não é propriamente uma canção popular, são várias quadras que eu compilei e com a melodia que às vezes eu invento na hora. E, às vezes não canto, mas são quadras populares sobre o rio.
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ASP: Acho que dou uma incidência maior à relação da mãe com a filha que na versão não aparece. A filha não tem mãe, ponto final, e está com o pai. Isto, por causa da versão inicial que tenho, de quem me a contou... de ensinar a fazer coisas com as mãos. Isso já é uma coisa que contava aos meninos. É mais forte. Mas isso também vem da versão de Ourique, que foi recolhida e está na Revista Lusitana, que diz que ganhavam alguma coisa... o pai vivia com a filha e ganhavam alguma coisa com o que ela fazia à costura. E eu criei, a partir daí, essa relação de quem é que a ensinou a costurar e a bordar e que ela seria muito jeitosa de mãos, que fica ainda mais trágico, ela perder os braços, não é? A ferramenta.
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LCC: um elemento para mim completamente estonteante, neste conto, e hás-de me responder se vem de uma dessas versões, que é uma sogra boa?
ASP: Ah, sim, vem de Ourique. Na versão que eu conto e que me contou a bibliotecária, a inicial e que eu conto às crianças, ninguém a quer na corte. E a sogra é má. A sogra e as irmãs do príncipe... que não a querem. E eu acho que deve ter sido invenção da mãe da informante, a questão de que lhe vão pondo bracinhos diferentes de palha, que vão experimentando, como uma boneca. Não encontrei nas versões que temos no Catálogo, não encontrei uma incidência nisso. Uma referência a isso. Pode ser que exista. Existem motivos semelhantes. Nesta história, não é muito relevante ela ir… até porque não acontece nada, ela não faz nada com aqueles braços, é só um adorno. Mas, na versão de Ourique, a sogra, a mãe é protectora. É protectora. Aí incide mais a questão religiosa, não diz que é o diabo que troca as cartas. Diz que as cartas são trocadas e ninguém sabe quem foi. Depois, aparece o diabo no fim e aparece o remate, sempre foi protegida por Nossa Senhora, “com quem Deus anda, com Deus acaba”, é porque há ali uma interferência no cruzamento destas cartas. Portanto, lá está outra liberdade, sou eu que ali coloco o diabo a trocar as cartas porque preciso de justificar… não está isso na versão, preciso de justificar quem é que faz aquilo.
LCC: E foi por esse contexto, dessa introdução do Barbieri sobre o lugar, e desse público que era do lugar… foi essa a realidade que te faz fazer uma introdução também sobre ti e sobre o teu lugar? Porque também enquadras a tua narração, dizendo que és de Lisboa. Qual é o objectivo de te localizares também a ti perante esse público?
ASP: Talvez para… é um processo inconsciente, não é? De criação de empatia. Mas para conquistar algum direito.
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LCC: Perguntava-te, o que é isso de cantar? Porquê essa presença tão forte na tua maneira de contar, no teu trabalho como narradora, porque é que está tão presente o cantar? O que é que sentes em relação ao cantar? E, se tu sentes que o cantar, depois, no contexto da performance, o que é que traz, qual é a mais-valia, que traz de novo para a tua prestação? O que traz de novo ou de diferente?
ASP: Não faço ideia. Não faço a menor ideia. Eu nunca decidi cantar. Não cantava antes. Não tinha nenhum prazer específico em cantar. Nunca trabalhei muito a minha voz, mesmo no teatro sempre tive uma voz esquisita e fugia de cantar. Não sei porquê. Tinha condicionamentos, acho que, psicológicos em relação à minha voz. Só comecei a cantar com as minhas histórias, logo no primeiro espectáculo que criei. Primeiro, porque tinha canções que queria cantar, que eram compostas e fui à procura do cancioneiro popular. Mas depois migrou. Começou a fazer parte da minha performance, um bocadinho sem querer, também, o cantar. Porque no processo de pesquisa dos contos ia encontrando canções, quadras, que tinham a ver… ou que eram daquela região onde aquela versão foi recolhida. Portanto, fazia parte dos materiais que tinha, as cantigas. Só mais tarde cheguei ao romanceiro. O que eu sinto é que o espaço de cantar, para mim, abre um estado de uma escuta do plano mais simbólico. É como se abrisse a escuta para receber um outro universo. Para desencriptar a linguagem simbólica que está na grande maioria dos contos que eu escolho contar. Sobretudo nos contos maravilhosos… esse universo. Abre para mim, coloca-me num estado de escuta interior e também prepara o público para essa viagem. Mas, foi uma descoberta. Agora, é confortável cantar. Foram os contos que me deram isso.
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ASP: O nosso trabalho devolve às pessoas, um universo que lhes pertence. Do qual elas fazem parte e sentem, com o qual, sentem afinidade. E isso é muito bom. Numa altura em que – já não estamos aí, mas – às vezes, há um divórcio grande entre a massa do público e as artes performativas. Como se houvesse um divórcio, não é? Às vezes, só estamos a trabalhar para o mesmo grupo de pessoas, que já se interessa e que já está desperto para… E acho que aquilo que nós fazemos chega a uma escala maior de pessoas. Eu gosto particularmente de trabalhar com os serviços educativos e em contextos de comunidade, em que podem estar todas as idades, congregadas. E acho que tem sido uma mais-valia para os lugares onde eu trabalho. Precisam de um espaço de programação, de um espectáculo, de um momento ou de uma sessão que seja boa para chamar todo o tipo de público, de todas as idades. Em que eu me posso adaptar. Se vierem 100 são 100, se vierem 60 são 60… se forem de 3 anos, eu adapto-me. Se forem 12 eu também me adapto. Portanto, é bom. E acho que isso vai ganhando mais espaço, dá-nos mais trabalho, o que é óptimo, creio.