Publicação original deste vídeo: http://palavrasandarilhas.pt/criar-comunidades/
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Licenciado em Antropologia pela FCSH – UNL e atualmente é docente, na mesma área, na Universidade do Algarve. Desde 1997 integra o Centro de Estudos Ataíde Oliveira, onde tem desenvolvido trabalho de investigação científica em literatura de tradição oral, nomeadamente em contos e lendas. É responsável pela constituição e manutenção do arquivo/catálogo de contos tradicionais portugueses e da base de dados on-line de lendas.
Transcrição
LCC: Luís Correia Carmelo
PC: Paulo Correia
LCC: Bem vindos a mais um encontro da Mouraria.
Hoje, nós temos connosco o Paulo Correia, que veio de Faro, da mesma cidade que eu. O Paulo, para quem não conhece, é investigador do Centro de Estudos Ataíde de Oliveira da Universidade do Algarve, onde também leciona. E... e onde, uma das pessoas que esteve... Ou a pessoa, tirando a Isabel Cardigos, que esteve mais envolvido com a construção do Catálogo de Contos Tradicionais Portugueses do Centro Ataíde de Oliveira. E... e também autor do nosso Catálogo de Contos Tradicionais Portugueses recentemente publicado em português. E, portanto, é alguém que está profundamente familiarizado com o material dos contos tradicionais. E com as lendas, também. E... O desafio de o convidar cá e para falar comigo, especificamente, que sou narrador e que investigo os novos narradores ou os narradores urbanos. Essas terminologias podem ser uma coisa que a gente possa falar também ao longo desta conversa.
Era contrapor estas duas visões deste material. De um ponto de vista de quem os estuda, de quem os aprecia, de quem tem um olhar muito específico sobre eles. E o olhar de quem os utiliza como objeto de criação artística e de produção artística no mundo contemporâneo.
A pergunta que eu coloquei ao Paulo quando fiz o desafio desta conversa que é uma pergunta que a mim me encanta profundamente e com quem tem, com muitos narradores...
É, quando olhamos para estes novos narradores para os contadores de histórias que estão aqui a contar nas "Palavras Andarilhas".
A Pergunta é: ainda podemos falar de oralidade?
Era essa a pergunta que servia de mote para a nossa conversa.
PC: Enfim, esta pergunta é realmente um dos focos do estudo, quer dos atuais narradores, quer dos narradores tradicionais. Porque, realmente, a oralidade é a forma pela qual estes narradores transmitem as narrativas que terão, enfim, um auditório mais ou menos, digamos, popular.
Pode ser um auditório indiscriminado. Interclassista. E pode ser, por exemplo, um auditório dentro de uma família, por exemplo, uma mãe que conta contos aos seus filhos, está num contexto tradicional.
Agora, realmente, a diferença que eu faço entre literatura tradicional e a literatura de autor, quer seja veiculada oralmente ou não, é precisamente o suporte dessa literatura. E esse suporte não pode ser visto só num nível, tem que ser visto a vários níveis.
Explico o que eu quero dizer com isto.
Portanto, a literatura tradicional normalmente... é… não de autor. E o suporte dessa literatura, dessas narrativas, é a memória. Memória essa que vai ser passada a palavras e essas palavras vão ser ouvidas por um auditório. E, se estivermos num contexto tradicional algumas das pessoas que ouviram essa narrativa, poderão transmitir essa narrativa de acordo com uma estrutura que é sempre a mesma. Mas depois, com pequenas modificações.
Eu acho que isso não acontece... E isso, estamos aqui para discutir. Não acontece com os narradores profissionais. Normalmente, há sempre uma fonte escrita. Quer seja um autor que escreve uma narrativa sua. Quer seja uma narrativa tradicional que é apontada e depois recriada.
Mas estes novos narradores raramente, se é que alguma vez isso acontece, vão utilizar só uma cadeia feita de memória-narração oral, memória-narração oral.
E eu perguntaria se achas que isto é assim ou se realmente há narradores profissionais que reproduzem esta forma.
LCC: Eu acho que há duas questões nessa pergunta que encerra e que a tua resposta também me leva a expressar. Que é, por um lado, há narradores, há muitos narradores que rejeitam, nos seus processos criativos, qualquer interferência da escrita. Alguns trabalham a escrita apontando um esqueleto da história. E depois, em performance, em situação de contar, improvisam a partir... improvisam textualmente a partir desse esqueleto. Mas, há alguns que nem isso fazem.
E acontece um processo comum, muitíssimo comum, que é o narrador ouvir outro narrador num outro contexto e imediatamente de repetir essa história noutro contexto seu de trabalho, sem nenhum processo de escrita ou de tratamento desse texto.
Há.... Acontece, mesmo em contexto profissional, essa transmissão sem fixação escrita.
Olha, outra questão que me levanta a tua resposta é:
Eu pergunto-me se... Mesmo quando olhamos para trás e por mais que olhemos para trás, que esse processo de transmissão oral, que a gente chama a reprodução oral, a transmissão oral, até que ponto que ela não era de fato, já desde há muito tempo contaminada? Que não havia comunicação entre as tradições escrita e oral? E se nós devemos, de fato, continuar a olhar, como houve uma tendência nas últimas décadas, não é? De olhar para essas duas tradições como uma dicotomia. Como uma coisa estanque e não permeável.
PC: Tens toda a razão. Aliás, qualquer purismo está a ser erradicado de qualquer estudo. Porque, cada vez mais, nós verificamos que nada é puro e há sempre contaminações, várias. Não só entre o oral e o escrito. Mas, também entre o autoral e o tradicional. E também entre géneros diferentes que se contaminam. Por exemplo. Há narrativas que nós não sabemos, quando olhamos para elas para classificar, não sabemos se estamos no domínio da lenda, se estamos no domínio do conto, se estamos no domínio da tradição explicativa.
Isto é, da história etiológica. São todas narrativas em prosa. E, pensamos nós, que será fácil destrinçá-las. Mas, às vezes não é. Ás vezes é muito difícil. E, às vezes, existem... uma tendência para estarmos ao mesmo tempo nos dois campos.
É como se na estrutura estivéssemos no conto, mas na crença, já estamos na lenda. Portanto, a narrativa é classificável internacionalmente como um conto, mas, depois em Portugal ela é numa determinada região ou em todo o Portugal, narrada como uma lenda. Porque realmente há um acreditar que aquilo se passa na realidade.
Há outra... outro mecanismo que também é importante nestas coisas. Pelo menos no lado da tradição. Que é.… digamos que... um... A audiência vai caucionar a história. Se uma história tradicional, em ambiente tradicional, é mal contada ou então não é contada como... reconhecível como sendo aquele conto-tipo. Imediatamente há um conjunto de pessoas que são tidas como sabedores que vão dizer: "Isso não é assim que se conta."
Portanto, existe um certo gradiente até ao qual, estamos no domínio da tradição. E, a partir de um determinado momento, já estamos numa outra área.
LCC: Mas esse processo, esse processo de... vá... de avaliação, de censura... Censura não é boa palavra. Mas de... de pressão social sobre quem conta, não é? E a forma, se está a contar bem, se está a contar como aquele que contava bem. Esse tipo de processo... Eu pergunto-me se não existe hoje, não é?
Por exemplo, hoje um narrador ali no palco das Andarilhas que for contar uma história e que começar a contar uma história como era contada, por exemplo, num outro sistema cultural em que era bom que, por exemplo, ou que a mulher que apanhasse em casa ou que o preto fosse completamente ridicularizado. Vai sofrer o mesmo processo de pressão social para... para modelar a sua história de acordo com as expectativas da sua audiência. E muitas vezes... Refere-se muitas vezes essa... essa... esse processo de modelação do conto através da sua transmissão de geração em geração ao longo dos tempos, como algo que é muito importante para a permanência das suas estruturas, das suas...
Eu pergunto-me se o processo não continua o mesmo, o que mudou foi o contexto em que acontece. Ou seja, se o narrador contemporâneo não está da mesma forma e como todos nós em sociedade, se não é alvo das mesmas pressões.
Mas a sociedade, hoje... mudou muito e essas histórias também têm que mudar.
PC: Sim. Portanto e aí já estamos num outro campo que é a questão do tipo de sociedade em que os contos são contados. E eu.... Aproveito para introduzir aqui uma coisa que eu já estava a pensar trazer aqui para a conversa que é uma classificação de... digamos, que personalidade de base das pessoas, dentro de cada sociedade, criada por um sociólogo americano da Escola de Chicago chamado David Riesman que vai dizer que numa sociedade pré-industrial, a personalidade base vai tender a ser dirigida pela tradição.
Isto é, a tal censura não é só feita quando alguém conta um conto. É feita quando alguém age.
Por exemplo, cumprimenta uma outra pessoa mais velha ou mais nova ou qualquer outra forma de atuar em sociedade, portanto, vai haver um consenso social sobre como é que cada umas das pessoas devem agir numa determinada sociedade.
E isso porque as sociedades rurais são sociedades, digamos que... tendencialmente fechadas. Com.… atuações específicas no campo social. Existem os artesãos, existem os agricultores. Existem a noção de homem, de mulher. E as várias funções para cada uma destas personalidades. E esta pressão da sociedade vai se fazer aí como se faz nos contos.
Acontece que o que nós chamamos de contos tradicionais vem precisamente dessas sociedades. E nós, em Portugal tivemos até, de grosso modo aos anos 70, uma sociedade maioritariamente rural. Tínhamos cerca de, creio eu, oitenta por cento da sociedade ruralizada. E só vinte por cento urbanizada.
Rapidamente, esse processo avançou, enfim... desde os anos setenta até aos anos noventa. E nos anos noventa já tínhamos uma inversão dessa sociedade. Portanto, vinte por cento é que.... estava... continuava rural. E os outros oitenta por cento já estavam urbanizados.
E essa mudança radical passou por cima de uma fase que o Riesman vai estudar. Ele estuda, claro, a sociedade americana que passou por uma fase de industrialização.
E nessa fase de industrialização, ele diz que a personalidade base é o individualismo. É o "self made man". É a própria pessoa, cada um dos indivíduos, é que vai dizer o que é certo ou errado.
E aí estamos no campo da narrativa... perante o autor.
Nós podemos agarrar num qualquer texto e modificá-lo à nossa própria maneira. Na sociedade em que nós vivemos e que os americanos também atualmente vivem e que, no fundo, se mundializou.
É a terceira categoria do Riesman que é uma sociedade controlada do exterior. Pelos meios de comunicação social. Pelos grupos, enfim... de amigos, etc., portanto. Há uma maior pressão, já não da comunidade, mas pressão vinda do exterior. De grupos... ou digamos, tecnologias bem conhecidas.
O Facebook, por exemplo, também é uma forma de se criar uma espécie de pressão. Mas que não é a mesma que acontece nas sociedades rurais.
Ora, para rematar este conjunto de ideias, diria que nos narradores profissionais estão, talvez, neste momento numa sociedade mediática, numa sociedade pós-industrial a criar uma nova tradição. E essa tradição, obviamente, que está fundada numa série de regras onde a mais importante talvez seja a regra do capitalismo onde tudo é mercadoria e a narração também é mercadoria. E o espectador deixa de ser espectador em comunidade e passa a ser um espectador, enfim... individualizado que sabe ao que vai. E o ato de contar está integrado.
Por exemplo... nas "Palavras Andarilhas" e noutros festivais que existem, não só em Portugal, mas também no mundo. Neste... Nesta condição, quase que diria artificial ou profissional. Mas que se desliga da vida quotidiana. Talvez seja... aquilo que mais... o distinga, distinga os atuais narradores do narrador tradicional que estava enquadrado no calendário das estações. No calendário da sua própria vida. As mulheres contavam às crianças antes de adormecer. Não liam o livro, mas contavam aquilo que tinham aprendido aos seus pais, aos seus avós. Os amigos que se encontravam na taberna e que contavam entre si determinado tipo de narrativas. Anedotas ou não... A questão dos funerais onde, também, tradicionalmente se contava isso.
LCC: Não está aí o Craveiro ainda, não?
PC: Não. Apesar de eu poder também encontrar na sociedade tradicional, profissionais que eram pagos para atuar, digamos assim, fazer uma performance. Estou-me a lembrar dos contadores que contavam nos funerais, mas também das carpideiras. As carpideiras não contavam propriamente contos, mas também tinham memorizado determinadas fórmulas que serviam, enfim... aqueles que os contratavam.
LCC: O que disseste levantou-me aqui várias questões, ao longo.
A primeira... Essa, é interessante essa questão do ... Quando olhamos para trás e lemos a tradição oral, é muito difícil porque fala-se desse contador de histórias. A figura do contador de histórias. Existe. Tanto é que o nomeamos, não é? Quer dizer, ele existiu. Agora quando começamos a olhar de fato para essa sociedade dita tradicional e vamos encontrando... E estamos a falar aqui da narração em prosa. Não estamos a falar da épica. Estamos a falar da narração em prosa. Dos contos maravilhosos e de outro tipo de contos e lendas. É difícil encontrar uma figura que exercesse, tirando raríssimas exceções como esse caso de quem contava nos funerais.
A questão é que... não era só isso que fazia, não é? Portanto, haveria quem fizesse exclusivamente essa atividade?
PC: Em Portugal, acho que não. Mas, se nós formos para uma área cultural que já foi a nossa, porque nós, enfim, tivemos uma presença islâmica grande em Portugal. Se nós formos a Marrocos, já vamos encontrar um narrador de contos profissional que conta nas feiras. Já há séculos e séculos. Portanto, esta tradição que também penso que funcione como os artesãos que passa... e como os Griots, que passa de pais para filhos, é uma atividade profissional. E estamos a falar, neste caso, de contos tradicionais.
Na nossa sociedade, qualquer pessoa poderia contar os contos da tradição. Mesmo que não soubesse. Agora, publicamente havia... uma noção muito grande de quem é que estava mais habilitado a contar. O grande contador ou a grande contadora é fulano tal.
LCC: Era onde ia chegar. Porque, de fato, nós temos muitas vezes no discurso, principalmente das pessoas assim mais envolvidas neste movimento, não é? Neste movimento artístico da narração oral, e que tem... Que é revivalista no seu carácter primeiro, não é? Na sua essência. Temos a tendência a olhar para esse passado ou para esse outro, não é? Ainda vivo de acordo com esse passado, não é?
Quando olhamos para fora, não é? Da nossa cultura e vamos buscar exemplos e vamos usar o paradigma africano e o africano, como se África fosse uma coisa comum ou vamos para a Ásia
Que é esse olhar de olhar para o passado e crer que o fato de essa sociedades viverem em comunidade, viviam... e foi interessante o que tu disseste há bocado de... Havia o agricultor. Havia o... o padeiro, havia... quer dizer, cada macaco no seu galho.
PC: Mas não havia o contador de histórias, se calhar.
LCC: Se calhar, não sei. A minha questão é: nós olhamos para esse paradigma tradicional ou o que chamamos tradicional como algo extremamente comunitário. Como se o ser comunitário fosse uma coisa não hierárquica. Como se fosse uma coisa horizontal. Em que todos contavam, todos ouviam. Muitas vezes podemos ouvir dizer: "Ah, contavam para todas as idades. Eu, o meu avô, a minha tia, contava. Estavam as crianças presentes. Estavam…" E eu pergunto-me se seria efetivamente assim. Não só por esse reconhecimento de algumas personagens: "Ah, aquele é que contava bem".
E quando olhamos para exemplos fora, para exemplos outros. Quando olhamos para antropologia. Quando vamos buscar à antropologia os nossos exemplos, vemos que nem toda a gente podia contar tudo. Nem toda a gente podia ouvir tudo. Aquilo só se contavam as mulheres. Aquilo só se contavam aos homens. Ou a um núbil ou a um iniciado.
Cada macaco no seu galho.
PC: Sobre isso há muito para dizer. E podemos começar já por aqui. Qualquer sociedade humana é hierarquizada. A hierarquia é fundamental. Porque nós ao contrário dos animais territoriais, organizamo-nos pela hierarquia. E portanto... para haver ordem na sociedade, tem que haver hierarquia.
E essa hierarquia, a primeira, é logo a separação por género, não é? Homens para um lado, mulheres para outro.
E, de fato, havia tradicionalmente vários tabus. E alguns deles é que não se podia contar às senhoras determinado conto porque parecia mal, etc. É o que se dizia.
Mas, depois se nós formos escavar vamos encontrar outras razões. Um outro fenómeno é que os antropólogos clássicos, digamos assim, quando começaram a estudar as sociedades extraeuropeias queriam encontrar sociedades não tocadas pelo homem branco, digamos assim, puras, ainda. E eu penso que quando os antropólogos foram estudar essas sociedades, já não existiriam sociedades intocadas. Nem que seja porque os antropólogos, quando vão para lá, mesmo que eles fossem os primeiros, já haveria aí uma miscigenação cultural.
Mas quando houve o refluxo desses antropólogos e muito por causa do desaparecimento das colónias. O movimento colonialista deixou de fazer sentido. E os antropólogos para não ficarem sem emprego voltaram para a suas terras e começaram a estudar aquilo que mais era parecido com as sociedades exógenas.
E quais eram essas sociedades?
As sociedades de pastores, as sociedades de agricultores. As sociedades, portanto, rurais. E que funcionavam de uma forma tradicional. E esta tradição por exemplo, a escola do Jorge Dias, o que ele procurava era o comunitarismo primitivo. E encontrou, por exemplo, em Vilarinho das Furnas ou em Rio de Onor, aquilo que ele chamou de atos em prol da comunidade.
Por exemplo, as vezeiras, os vizinhos que se organizavam para tratar de um rebanho aparentemente comum. E para não irem todos com as suas cabeças de gado, juntavam o gado todo e cada vizinho ia à vez apascentar esse gado. E devido ao fato de estas sociedades estarem em meios remotos, Trás-os-Montes, onde a justiça de Lisboa demorava muito tempo a chegar lá. Os vizinhos... mas não eram todos, eram só os mais velhos e os homens... decidiam sobre as atividades a fazer, como organizar a comunidade.
E muito por essas monografias que se fizeram, ficou a ideia que realmente a sociedade tradicional era uma sociedade democrática. Democracia direta, portanto. Uma sociedade onde as coisas se resolviam através de uma censura positiva e os prevaricadores voltariam ao centro da sociedade, portanto. Seria uma sociedade sem marginalidade ou com pouca marginalidade.
E, os contos também fariam parte, enfim, deste sistema para levar as ovelhas tresmalhadas, enfim, ao rebanho. E daí que os temas fossem muito específicos.
Mas, também, podemos encontrar desde o século XIX, desde que foram publicados livros de contos tradicionais, podemos verificar que os primeiros organizadores desses livros, escolhiam alguns géneros que eles consideravam nobres. Os contos maravilhosos, por exemplo. Alguns contos de animais. Os contos religiosos, claro. E, alguns contos mais escabrosos, como os contos jocosos, eram retirados.
Apesar de nós sabermos hoje, através de recolhas que.... nas sociedades tradicionais, muita marginalidade era veiculada, pelo menos em termos verbais, através de contos.
LCC: Ia-te perguntar uma coisa. Do que tu disseste. És o primeiro.... É possível a gente intuir essa... Haverá essa divisão? É possível pensar assim: este conto era mais contado. Há mais informantes masculinos deste conto. Aquele era mais as mulheres. Quem é que contava o quê? Dos nossos contos tradicionais?
PC: Bom... Eu posso dizer, através de recolhas recentes. Por exemplo, estive à pouco tempo a tratar um conjunto de recolhas no CEAO, desde 1993 até 2017. E fiz uma estatística. Cerca de oitenta por cento dos narradores são mulheres. Mas, também, a grande maioria, mas a esmagadora maioria dos coletores isto é, dos alunos, são mulheres. Porquê? Porque estas recolhas foram feitas no domínio das Humanidades, onde há mais raparigas. E talvez as raparigas tenham mais contato com as mães, com as avós do que propriamente os rapazes. E os rapazes também a quem é que vão pedir? Às mães porque as mães também são a primeira figura de socialização, quer para o rapaz, quer para a rapariga. Não sei se é por isso, se é por os homens serem mais tímidos ou é se realmente, por não terem essa memória tradicional, como as mulheres têm.
Agora, em relação à separação entre quem é que conta o quê, eu não acho que exista uma especificidade para as mulheres contarem, por exemplo, como se costuma dizer, as mulheres costumam contar mais contos maravilhosos. E os homens costumam contar mais contos do "ó que estúpido". Ou anedotas.
As mulheres também contam imensas anedotas. Quem é que as anedotas onde os homens, enfim... são isto e mais aquilo. São normalmente as mulheres. E... e... e enfim... enchem a barriga a rir com esta forma, não é? De olhar para o outro sexo.
LCC: Houve outra coisa que tu disseste também antes que foi esse reconhecimento que, de fato, quando se vai fazer recolhas, ouve-se falar muita vez: "Ah, mas eu conto isto assim, aquele é que contava bem". não é? Esse reconhecimento de alguém que contava bem. Contrapondo com aquilo que tu disseste logo no princípio que é a questão autoral. É curiosa a proximidade com a palavra autoridade.
Olhamos para o fenómeno contemporâneo e dizemos, ah, este fenómeno contemporâneo é de uma sociedade que reconhece o autoral. A originalidade. Que o que valoriza é a originalidade. É justamente o sair da tradição é o não contar como o anterior contou.
Estão dois narradores ali no palco das Andarilhas que contarem de maneira igual, o segundo vai ser desvalorizado. Mas se contar de uma maneira completamente diferente vai ser valorizado.
E normalmente se diz que as sociedades ditas tradicionais o que valorizavam era a manutenção do padrão. A contar daquela maneira, que se não contar aquilo bem...
Mas... Eu pergunto-me se não houve sempre e houve sempre de alguma maneira, mas qual é o nível e qual é a importância desse reconhecimento, se não houve sempre o reconhecimento da originalidade, o reconhecimento da autoridade, no sentido autoral. Da transformação do próprio conto, do modo de contar.
Porque sempre que falamos... Sempre que vamos a uma recompilação, ou vamos ver o testemunho dos informantes, vamos ouvir falar disso: "Aquele é que contava muito bem". E, às vezes, até aquele contava bem essa. Não é? Porque se calhar outro contava bem aquela.
PC: Eu posso dar um exemplo realmente que sai um bocadinho fora do padrão. Enfim... do habitual narrador dito tradicional, onde há sempre, apesar de tudo, uma tensão entre a estrutura e a variação. Portanto e até de reconto para reconto, a mesma pessoa, e não é preciso os recontos serem.... estarem distantes, muito longe no tempo. Basta que uma pessoa conte hoje assim e daqui a uma semana conte o mesmo conto.
Isso aconteceu, por exemplo, com a Filipa Faísca de Sousa. É um caso, aqui no Algarve, em Querença. De uma senhora realmente que é considerada não só pela sua comunidade, mas como pelos coletores, que, desde o Professor Viegas Guerreiro até à Idália Farinho, por exemplo. E até a alunos da Universidade do Algarve. Têm recolhido as mesmas histórias e ela conta-as sempre de forma diferente.
Apesar de se notar, enfim, que há ali uma marca que é dela. Porque ela, digamos que tem um ponto de vista na história. Esse ponto de vista é que talvez seja uma marca que não, talvez não seja autoral, mas que caminha para uma marca autoral.
Agora, tenho um caso, que eu penso que seja único, que é o Guilherme da Silveira, um pescador de baleias da Ilha do Pico, que foi gravado pela Joan Purcell, uma investigadora norte americana nos anos 70, nos Açores. E depois foi, quando ele emigrou para os Estados Unidos, foi gravado de novo o seu repertório. Quase integral. Portanto, estamos a falar de cerca de oitenta histórias. Essas oitenta histórias foram gravadas de um lado e do outro do Atlântico. E, são histórias que demoram horas a contar. E ele pega na estrutura das histórias tradicionais - nós vemos que aquilo é um determinado conto-tipo -, mas ele mete toda a sua experiência ali na história.
Agora, eu pergunto se isto não é uma marca de autor? Ele transforma um conto onde habitualmente estão presentes princesas, príncipes, reis, e mete ali figuras da pesca da baleia. Portanto, mas sem deixar de pegar numa grelha tradicional. Ele não cria nada.
Outra coisa que também podemos, enfim, pensar é a questão entre a literatura, a chamada Alta Cultura e a Baixa Cultura, não é? A cultura escrita e a cultura tradicional ou oral. Estou-me a lembrar dos novelistas do século XVII- XVIII, na Itália. Das várias... dos vários principados da península itálica. Que nos deram coletâneas de autor de muitos dos contos que nós temos, que nós atualmente catalogamos, recolhemos da tradição oral, não só portuguesa mas também de outros países da Europa.
E há até estudiosos que não acreditando que o povo seja criador - não quer dizer que nós não podemos indicar quem é que criou que os vários contos-tipo - não tivessem sido criados por esta classe. Pelas classes mais baixas da sociedade. Há quem não acredite nisto.
Há quem diga e até há uma escola antropológica, os difusionistas, também diziam que "O povo não cria nada, o povo só imita". O primado da imitação... é considerado por estes especialistas para dizer que os criadores que pertenciam às classes superiores nobres, depois mais tarde os burgueses. E, o povo ouvindo estas histórias no púlpito. Os padres utilizavam-nas nos sermões como exemplos. Ou lendo ou ouvindo alguém ler nas praças das suas aldeias. Ouvindo um cego cantar os seus folhetos numa feira. Iriam então memorizar e depois a partir daí passar oralmente.
LCC: Isso quer dizer que as narrativas de tradição oral, que nós sempre entendemos como anónimas, tiveram um autor algures por aí?
PC: Isso aí, não há dúvida porque as coisas não aparecem por geração espontânea.
Agora, o que está aqui em causa é que há duas maneiras de se abordar a literatura oral tradicional.
Uma delas é dizer, é ir buscar a mais antiga versão escrita e dizer que esta é a versão que foi escrita por um autor. E a partir daqui todas as outras versões, ou vieram desta ou vieram de versões escritas que circulavam nesta época ou numa época posterior.
Há outros que dizem que não. A oralidade precede a invenção da própria escrita no tempo, neste tempo, enfim, da nossa espécie. E, portanto, que talvez no Neolítico, estamos no domínio da pura especulação, com esta agregação das sociedades, esta sedentarização das sociedades em torno de tarefas comuns, neste caso, a agricultura. A formação de uma ordem estatal, enfim uma hierarquia criasse, enfim, uma série de histórias. Umas delas contadas por simples agricultores. Outras, talvez criadas e escritas pelos escribas ao serviço do... dos vários príncipes, dos vários reis dos vários Estados. E, a partir daí, com a eliminação natural pelo tempo das provas escritas, dos papiros, da escrita coneiforme, muita coisa se perdeu.
Quem nos diz a nós que muitas das histórias não estiveram já escritas?
LCC: Algumas a gente sabe...
PC: Algumas, sim. Outras, não.
Agora, nós temos que tomar uma... foi um dos pontos em que realmente, uma das encruzilhadas a que eu cheguei. É que tive que decidir se queria ser oralista, se queria ser, estar do outro lado. Porque realmente se chega a conclusões muito diversas.
LCC: Para não ficar dúvidas, ficaste de?
PC: Do lado da oralidade, claro.