"Começou por acaso. Não sabia que existiam contadores de histórias. Não sabia que podia fazer vida disso. Não tinha nenhuma ideia, nem sequer tinha um modelo de contador caseiro. Portanto, não tinha nenhum modelo de contador de histórias. E lá estava o velhinho, agarrado ao cajado. E, de repente, foi assim o primeiro impacto que eu tive com um homem da tradição popular, e que me deixou completamente surpreendido... E ele contou uma história que eu conhecia e que eu tinha lido. Ele contou aquilo com uma densidade que não estava lá no livro que eu tinha lido."
Transcrição
LCC - Luís Correia Carmelo
AF - António Fontinha
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AF: Começou por acaso. Não sabia que existiam contadores de histórias. Não sabia que podia fazer vida disso. Não tinha nenhuma ideia, nem sequer tinha um modelo de contador caseiro. Portanto, não tinha nenhum modelo de contador de histórias. Não tinha. Na altura, se depois de eu ter contado histórias, alguém me perguntasse eu teria dito: “Não, a minha mãe contava para adormecer”. Que foi aquilo que eu fiz naquele momento em que aconteceu o primeiro momento de narração. Então, a única representação que eu tinha era que, assim, muito adormecida na ideia, era que a minha mãe me contava à noite e eu já estaria na cama. Era a única ideia. E foi uma réplica disso que começou a brincadeira. Eu trabalhava com jovens… Portanto, eu na altura já tinha formação de ator, já tinha largado, abandonado a Escola Superior de Teatro em rutura com uma escola mais convencional, optando por uma escola mais tradicional, se quiserem, ou mais pragmática que era começar a fazer teatro e ponto final.
E, então, eu tinha que ganhar a vida. E para ganhar a vida, uma forma fácil de ganhar a vida era trabalhar ao nível da animação com jovens, com crianças. Já tinha feito alguns trabalhos, estava a fazer mais um, estava a trabalhar com o Chapitô. Só que ao fim de um ciclo anual em que eu ia todos os dias trabalhar com jovens, em expressão plástica, que nem sequer tinha nada a ver, portanto, com a minha área... Apesar de ter funcionado muito bem a minha relação com os jovens, eu disse: “Epá, não dá, porque eu não consigo levar a sério o meu trabalho de ator porque, ok, continuo a fazer, faço uns espetáculos aqui, outros ali e tal, mas não consigo investir verdadeiramente, ou estar, porque tenho aqui alguma salvaguarda financeira nas tardes que fazia”. E, então, disse: “Não, pá, vou acabar com isto, vou-me dedicar, vou mesmo arriscar tudo no teatro”. E então deixei. Mas ao arriscar tudo no teatro havia um parente pobre, que eram as crianças, uma relação de um ano, com…. Diariamente, quatro dias por semana, todas as tardes eu ia lá durante duas horas e meia, três horas, um ateliê. E, então, tive que fazer aquilo que se chama o desmame da relação, porque havia miúdos lá mais pequenos... Agora o quadro penal, ou seja, as medidas tutelares educativas é dos catorze aos dezoito. Antigamente não. Poderia haver miúdos de oito, nove anos, dez anos e há uma relação afetiva diferente. Então eu ia lá as noites, na noite que era convencionalmente de férias de Teatro, que é a noite de segunda-feira,
Numa dessas noites, há um miúdo qualquer que me pede para contar uma história. E, então, eu: “Sei lá que histórias, sei lá histórias e tal”. “Conta lá, conta lá, conta lá”. E depois, entretanto, eu já me estava a vir embora mas os miúdos estavam, e já estavam outros também: “Conta lá uma história e tal”. E o monitor a dizer: “Epá, esta na hora e eles têm que subir para os quartos”. “Epá, então só se for… Então, olha, ok, vocês lavem os dentes, eu vou com vocês até à camarata”. Na altura, havia camaratas, eram uns seis, sete rapazes. E eu a pensar, a ganhar tempo também para pensar que raio de história vou contar. E a única história que eu acho, eu não tenho a certeza absoluta... A minha mãe contava duas ou três da tradição oral e eu devo ter pegado naquela que me lembrava melhor, que era a “Velha e a cabaça”, muito provavelmente. E, então, cheguei lá à camarata, contei a história e pronto. Agora já está feito, os miúdos todos contentes, fixe e tal. Estiveram ali dez minutos a ouvir-me contar a história. Felizmente, nenhum que sabia, ninguém disse nada, eu já conheço, nada. Se eu contasse a “Capuchinho Vermelho” teriam dito, naquela… não disseram. E eu, tudo bem, vim-me embora. Acabou. Passei uma semana inteira sem pensar mais no assunto. Isto para mim não tinha tido significado. Na semana seguinte, quando voltei na segunda-feira, aquele miúdo veio logo a correr: “Tens que contar outra história”. E já vinham mais três ou quatro: “Não foste à nossa camarata, também tens que vir à nossa e tal”. “Então, mas, não estou a perceber.” Na altura não percebi. “Aquela história que tu contaste”. “E, o que é que tem?” “Então, tens que contar uma, agora, hoje outra vez.” “Ah”... E eu já preocupado. Que história é que vou contar? O meu repertório era…. Mas, fiquei assim, mas…. Mas os miúdos todos: “Agora tens que vir para a nossa, e como é que é”. “Mas, não pode ser! Não se podem juntar várias camaratas”. E durante a semana aquilo tinha funcionado e os monitores disseram: “Mas não faz mal, a gente junta-os todos numa e depois separa e tal. Fazemos naquela outra”. E eu disse assim... Aquilo já estava tudo orquestrado, só eu é que não sabia. Pronto, fui convivendo com os miúdos, mas eles sempre a dizer: “Depois contas, depois contas”. E eu a pensar… Aí, nessa segunda noite, passado uma semana, eu vim para casa muito preocupado. Porque eu, de repente, já reparei que os miúdos ficaram calados o tempo todo. Da outra vez, pensei que era a primeira vez. Mas agora não. E agora não eram seis ou sete da camarata. Eram três camaratas ou vinte e tal miúdos. Ora isto... Eu estava habituado a trabalhar com aqueles miúdos todos os dias. Quatro ou cinco miúdos daqueles ficarem calados era um serviço. E entretanto eu tinha aqueles todos… Eu estava a achar aquilo tudo muito estranho e pensei. E como aquilo era uma prestação performativa – no fundo eu estava a fazer o mesmo trabalho que no teatro, estava perante um auditório que ficou calado a ouvir-me falar – aquilo já me perturbou. Porque depois, nessa semana, isso foi importante. Porque eu já fiquei a fazer ligações com alguns exercícios de teatro que eu tinha feito. Algumas reflexões sobre teatro que eu tinha feito. Algum posicionamento relativamente às artes do espetáculo que eu tinha. E, tudo aquilo me baralhou muito o sistema. De tal forma, que depois na outra semana já provavelmente trouxe qualquer coisa para contar, já pensando que eles me iam… E, depois já me afastei porque, entretanto, achei que… Mas já ao fim de uns meses estava a apresentar um projeto à Tété – porque eu já tinha dito à Tété “não” - ela tinha aceitado um trabalho de expressão dramática durante a parte da tarde, que depois ia ser levantado num espetáculo... Fiquei a amadurecer isto e depois, passado uns meses, apresentei um projeto mesmo para ir só ao Centro Educativo contar histórias.
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AF: No princípio, Bibliotecas, por exemplo, não houve bibliotecas a entrar no movimento. Era só escolas. Muitas escolas a demandar e todas as áreas de intervenção prioritárias que passado uns anos deixou de haver.
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AF: Quando eu comecei a contar histórias, eu disse: “Lá estás tu, António”. Quando eu já me tinha afastado do conservatório, quando eu já estava a fazer o meu próprio caminho. A primeira companhia de teatro que eu fundo, uma companhia de teatro-dança, com muito movimento físico, com muito trabalho físico, onde eu tenho já qualidades, depois desenvolvi essas qualidades com professores de… a parte fala era sempre o parente pobre. E, de repente, eu estou a contar histórias e digo: “Mas, estás a investir nisto para quê?”. Só para chateares a tua cabeça porque aqui eu estou quietinho, estou a contar histórias. Os miúdos não precisam de mais nada porque, performativamente, nós depois podemos ampliar o trabalho físico, conforme a ocasião. Mas numa situação de Centro Educativo não precisamos, os miúdos conhecem-nos, estamos a contar histórias à noite, pá, a gente conta a história, o mais importante é a história, não é a prestação performativa. Então, eu cada vez que lá ia, dizia: “Não faz sentido”. Ou seja, não fazia sentido durante muito tempo. A única justificação que eu dava a mim próprio, a consciência dizia assim: “Não, esse é o teu ponto fraco. E, portanto, estás a trabalhar o teu ponto fraco”. E, por aí, eu dizia: “Bom, se isto é para eu ficar mais completo, menos mal”. Mantive, mesmo depois de acabar a experiência do teatro-espaço, até bastante mais tarde, uma professora que depois foi a minha professora de referência na área da voz, mantive durante muitos anos, ou seja, mantinha a professora de voz e, então, ela própria me dizia que eu estava a fazer grandes progressos, a fazer progressos. E, portanto, isso também foi importante porque para um contador de histórias, a voz é de facto um aparelho extremamente importante. O corpo também. Mas a voz foi o primeiro problema que eu tive... Para dizer que contar histórias era ao arrepio das minhas qualidades.
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AF: “Então, mas que histórias vou eu contar a estes miúdos?”. Eu já falei. Eu conhecia duas ou três da minha mãe: “A Velha e a cabaça”, “O lobo e a raposa” e a história da “Carochinha”. A história de “Carochinha”, eu já achava que aquilo não fazia muito sentido para aqueles miúdos. Então, estava com duas. “E agora?” E agora fui ler mais. Porque estas histórias, quais é que eram? Não foi a minha mãe que as inventou, então, a minha mãe sabia como? Porque tinha ouvido a avó. Mas a minha avó contava uma outra que não era muito politicamente correta. Então, também, tenho três histórias. Não chega. E também não vou contar aquela porque aquela também não é boa para os miúdos porque não é politicamente correta”. O que eu pensei na época. Porque nós... O que é engraçado que hoje temos uma representação diferente. Então, mais contos tradicionais? Deve haver! Há mais histórias com lobos e raposas… toca lá a ler!
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LCC: Como é que de repente vais parar, e de forma tão significativa no teu percurso, a fazer trabalho como recolector?
AF: Quando eu começo a ler, eu leio, leio, leio este, e depois vou à procura, depois sou um bocado chato, tento confrontar, depois começo a contar as histórias, começo a ver várias versões.
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AF: Estamos a falar em 93 – algumas recolhas são recentes. “Ainda há gente a contar estas coisas”. Porque depois eu de ter lido isto tudo, eu continuei a ler o que saía. E de repente, em 93… exatamente, no final de 92, eu cruzei-me com… ou em 93, eu não tenho a certeza, aqui já tenho dúvidas… com a Isabel Cardigos. Numa conferência que ela dá, na Casa Fronteira em Alorna, sobre os contos tradicionais. E, de repente, ela conheceu uma professora que disse que havia lá um senhor que contava muitas histórias e o pastor veio de São Vicente e Ventosa, de Portalegre, Distrito de Portalegre, para a Casa da Fronteira, em Alorna, em Lisboa, para fazer a abertura da conferência. E lá estava o velhinho, agarrado ao cajado. E, de repente, foi assim o primeiro impacto que eu tive com um homem da tradição popular, e que me deixou completamente surpreendido. “Então, de facto, contam-se”. E ele contou uma história que eu conhecia e que eu tinha lido. Ele contou aquilo com uma densidade que não estava lá no livro que eu tinha lido.
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E na primeira oportunidade lá estive com o velho e é o primeiro homem a quem começo a fazer recolha. E depois, entretanto, já trabalhando com bibliotecas municipais.... Há uma biblioteca municipal que me pede trabalho. Eu trabalho nas escolas e, de repente, a biblioteca municipal interessa-se também pelo processo de recolha e começo a fazer a recolha de Palmela.
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AF: Quando eu meto todo o meu empenho no trabalho de contador, o trabalho de recolector já está presente porque eu já estou a fazer recolha. Portanto, eu cheguei a contar com o senhor Manuel no Festival de Teatro de Portalegre… como é que aquilo se chama? Tem um nome que eu agora não me estou a lembrar. Eu fui durante vários anos consecutivos a Portalegre contar histórias e, de repente, consegui arranjar um processo para agarrar o senhor Manuel que, entretanto, eu já tinha entrevistado várias vezes, e para ele ir comigo às escolas, contar histórias. E, então, aí faço ainda mais uma recolha e vejo-o, no fundo, no papel de contador de histórias. Isto, estamos em 96, por aí.
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AF: Eu tenho já uma grande fasquia de histórias que eu ouvi da tradição oral. Mas tenho uma grande quantidade. Os contos, todos fundadores, são histórias que eu li. E, portanto, interessei-me pela narrativa antes de pela relação.
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AF: Ao longo dos anos, eu fui tendo representações diferentes do…. O meu posicionamento foi sendo diferente. Em grandes traços, dígamos que, os dez primeiros anos, que vão de 92 até 2000, 2001 por aí… são dez anos que não são dez anos, porque também tem a ver... Isso tem a ver mais comigo, mas também tem a ver com tudo aquilo que estava à nossa volta, ao aparecimento de novos narradores. Ao pequeno boom que houve de narração oral em Portugal, que acontece em 2001, por aí, 2002 em que, de repente, se começa a ouvir falar mais e começa a haver uma demanda. E começa a existir de facto um mercado de narração oral em Portugal, portanto. Esse primeiro momento, eu... para mim, era importantíssimo a afirmação da figura do contador de histórias e da prática de contar histórias, para que fosse claro que havia pessoas que podiam dedicar manhã, tarde e noite a essa prática e que, naturalmente, eram pessoas que deveriam ser tidas e achadas quando se falasse de contar de histórias. Porque contar histórias é tudo, é muito lato, nunca foi valorizado. E, de repente, estava a ser valorizado. De repente, estavam-me a chamar para contar histórias em contextos em que nunca tinham sido os contadores de histórias valorizados para chamar, nesses contextos. Portanto, havia um elemento que era importante: a afirmação da narração oral e do ato de contar e da figura do contador de histórias.
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AF: Na segunda década, então, 2000 a 2010, eu não falhei um convite em Portugal para festivais de narração oral. Sempre que eu tinha agenda e dizia logo que sim aos meus camaradas. Porque era um espaço que eu tinha ajudado a criar e era um mercado que eu tinha ajudado a criar e era um mercado que... acompanhar o desenvolvimento desse mercado era uma obrigação para mim. Portanto, eu não questionava. O gostar mais, o gostar menos do tipo de sessões que me propunham ou não... mas eu ia a todas. E, normalmente, estava sempre nos cornos do touro porque como era o irmão mais velho, se havia um problema, lá ia eu para a frente. Eu só começo a refletir... no final dos segundos vinte anos, é que eu começo a refletir qual é o meu espaço. Aquilo que tu falas do teu posicionamento, o teu percurso… Só ao fim de vinte anos é que eu começo a dizer: “Espera, mas sejam eles meus camaradas ou não, eu não me apetece fazer isto, ou não me apetece fazer aquilo”. E digo: “Mas eu não tenho obrigação nenhuma de fazer. Já fiz o que tinha a fazer, eu agora posso-me posicionar pessoalmente… posso procurar os meus caminhos”. Isso levou um tempo, porque é uma pele que eu tive que tirar. E é uma pele que não é fácil porque essa pele estava ligada à fundação da prática da narração em Portugal. Então, a primeira pele, quando eu começo, dígamos, eu sou o elemento polarizador de narradores que contavam ocasionalmente. O movimento de narração oral, a primeira geração, dou sempre cinco narradores: o Horácio [Santos], o Ângelo [Torres], a Cristina [Taquelim], o [Jorge] Serafim e eu. Eu identifico como sendo os primeiros narradores que investiram muito na prática da narração, que se envolveram profundamente e intimamente com a prática da narração. Esses cinco narradores, pronto... eu era o polarizador desses cinco narradores, de certa forma. E, então, o movimento de narração... Porque eu era profissional e eles não, na altura. Neste momento, já alguns deles… o Serafim, acho que foi o segundo a profissionalizar-se, em termos de viver da prática de contar histórias. O Ângelo sempre conviveu com isso… E eu também sempre achei que o importante não era o profissionalismo, numa primeira fase eu acho que era importante o envolvimento profundo, mas numa segunda fase o envolvimento profundo é interior e, portanto, não tem a ver com o amadorismo ou com o profissionalismo. O narrador pode ser um magnífico narrador sendo amador da narração oral e, portanto, isso não havia problema nenhum. Mas isso, eu compreendi logo ao fim de oito ou nove anos, só que eu era o polarizador. Como era profissional estava de manhã, de tarde e à noite, achava-me sempre na obrigação de que tinha que ser o po…. E essa pele de polarizador, foi difícil de, ao fim de vinte anos, de a tirar. E dizer: “Não, eu agora não sou polarizador de coisa nenhuma, eu quero é fazer o meu caminho”. Aquilo que tu me perguntas: “Então o teu caminho, o teu posicionamento”. O meu posicionamento tem poucos anos. Eu, só muito recentemente, é que comecei a ponderar: “Afinal, como contador de histórias, eu sou o quê?”
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AF: Ontem, depois de fazer a primeira sessão, o meu imaginário já disparou. Para hoje tinha menos variáveis, já podia apontar…. Olha, agora posso experimentar como é que funciona esta combinação. E trouxe uma combinação de contos. Eu ontem, por exemplo, não contei uma combinação porque o conto que eu contei era um conto maravilhoso suficientemente denso para ocupar o espaço todo. Aqui não. Aqui se eu contasse um conto de animais, que foi o que eu fiz, eu teria que depois compensar com um outro tipo de narrativa, para que o conto tradicional tivesse uma representação, pronto, mais alargada. Ainda por cima estando a trabalhar com um público idoso que está dentro um bocadinho dos ritmos da tradição oral, das variáveis da tradição oral.
Porque é muito importante o primeiro impacto com o lugar e o primeiro impacto foi ontem. E depois de eu ter o impacto com o lugar, eu já sabia calcular muitas variáveis.
LCC: A primeira história que tu contas é o “Lobo no poço”. A tua fonte, qual é? Ou, as tuas fontes?
AF: É escrita. A primeira fonte é escrita. É um conto pelo qual eu me interesso por fonte escrita. Agora, não te sei já dizer exatamente qual é a fonte escrita mas é um… Aliás, é um tema pelo qual eu tenho um interesse e um desinteresse simultâneo. Porque a fonte escrita... Eu estou em dúvida se o primeiro tema que eu li deste conto, a primeira leitura que eu faço deste tema, melhor dito, ou deste tipo, é no conto tradicional português ou no conto tradicional africano. Este tipo aparece muito facilmente na tradição oral africana. Não com o lobo mas com o leão. Aparece em muitas recolhas. E eu já não posso precisar se este… E na tradição oral portuguesa não temos muitas versões deste tipo. E, portanto, quando eu li, se calhar na tradição oral portuguesa, já o tinha lido na tradição oral africana, nalguma coletânea de contos, nalgum livro de contos tradicionais. E, portanto, eu lembro-me que há um interesse e um desinteresse. Posteriormente, eu recolho este tema. Eu ouço contar a um idoso, na recolha de Alijó. E quando eu ouço, aí ele ganha uma existência outra.
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LCC: Porque tu dás-lhe um carácter quase fábula. Porque há um fim, que até é pouco comum em ti, há um fim moralizante. Isso é uma liberdade tua?
AF: É uma liberdade minha porque é um conto… o que acontece é que este conto não teve sempre essa liberdade final.
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AF: Dígamos que não é uma moralidade convencional. É uma moralidade ao arrepio da convencionalidade e que a mim me interessa muito porque muitas vezes os contos tradicionais estão dentro dessa lógica, não convencional. Então, o exemplo deste lobo é interessante. Esta história é interessante pela qualidade de exemplo, que serve perfeitamente ao animal homem. E, então, neste caso há uma associação ao animal homem que é feita só no final da história. Aqui tem a ver naturalmente com a identificação do narrador.
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AF: Na tradição oral há muitas coisas que são contadas e muitas vezes não são contadas com a intensidade certa, no momento certo. Pode ter a ver comigo, pode ter a ver com o detentor. Eu não liguei a este tema.
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AF: E este aqui, quando eu me cruzei com ele, disse: “Olha este aqui tem água e é engraçada a relação com a água. É engraçada a relação com o vinho, na primeira fase”. E disse: “Hum, não é má saída, não é um mau conto de saída”. É um conto que, como eu não tenho muita rodagem, contarei rapidamente, contarei, pronto, em interação. Só tive que tentar arredondar umas pontas, dar umas voltas e disse: “Eu sou capaz de arriscar este conto com um público que eu acho que está”. E esse já vinha alinhado na linha do lobo e da lebre.
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AF: A tradição, o preceito da tradição é esse: ouvir e contar. Que é esta história de “ouvir e contar, em pedra se há-de tornar”. Era este chavão. Este é o chavão da tradição. Eu estou exatamente no ponto oposto. Eu estou no contar e ouvir. E acho que é o meu... A nossa geração de narradores, que neste momento têm algum espaço para contar histórias, eles estão a trabalhar ao contrário. Nós trabalhamos ao inverso. Dígamos que nós não nascemos no seio da tradição a ouvir e contar, a encontrar um preceito e a exprimirmo-nos. Nós começamos primeiro a exprimirmo-nos e depois, então, vamos à procura do preceito. E quem observar esta sessão, é nitidamente uma sessão em que eu sou o contador, eu sou apresentado como contador. Portanto, já não tenho sequer que fazer um trabalho de enquadramento e, depois, eu vou à procura de ouvir. Agora, isso é sempre um conflito, como tu observaste. Eu acho que a medida de esse conflito é, pronto, como eu gosto de me posicionar ao nível da narração oral.
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AF: Neste espaço, eu resolvi arriscar sem dúvidas. Aliás, porque isto são frações de segundo. Quando o senhor disse e eu percebi que ele poderia dizer... e eu avancei. Eu não teria confiado noutros senhores que ali estavam ou noutras senhoras que ali estavam. Mas naquele senhor eu confiei de imediato. E, eu confiei de imediato… Eu também já tinha a informação de que todos estes escutadores já tinham estado noutras sessões de contos. Ou seja, eu perguntei isso ao Zé [José Barbieri] antes de começar a sessão. Tu já me tinhas dito que tinha havido grupos seniores. E eu aqui perguntei. Como vi a familiaridade com que eles chegaram, o à-vontade com que eles cumprimentaram as pessoas, perguntei se eles já estiveram. E Zé disse: “Não, eles já estiveram em três momentos, estiveram assim, assado, cozido e frito”. E disse: “Bom, então este grupo estará mais à-vontade do que eu, porque eu só estou cá pela segunda vez, de certa forma”. Então, eu achei que eles já tinham um nível de maturidade entre eles para aceitar que um falava e os outros escutavam. E, portanto, eu iria ser capaz de moderar essa relação, que é uma relação de alto risco.
LCC: E qual é a riqueza, para ti, de uma aposta dessas?
AF: Nós nunca sabemos o que é que vai dar, nós nunca sabemos. Podem acontecer coisas, podem acontecer ganhos surpreendentes. Revelar-se de repente um narrador mais acutilante. Ou podemos estar a este nível, que no fundo ele estava a fazer uma confirmação de uma informação que eu tinha dado com a sua vivência.
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AF: O ganho aqui é só de que o grupo teve espaço para participar. É importante… A variação que eu tinha feito ontem à tarde, por exemplo, dificilmente eu arriscava. Porque havia núcleos diferentes, havia pessoas que vinham de uma área, doutra área. Havia públicos diversos. Aqui era só aqui este público. Eu não estava a arriscar a sessão, a relação com aquele grupo, que ainda era um grupo com alguma expressão numérica. Mas todo este grupo, com expressão numérica, tinha uma mesma matriz. Tinha uma mesma proveniência. Portanto, não havia proveniências diferentes e, portanto, não estava a arriscar tanto. E, então, achei que era importante, nomeadamente da pessoa de onde veio, do idoso que quis contar.
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AF: Quando nós arriscamos, não sabemos se vamos perder ou se vamos ganhar. É como nas apostas do jogo. E muitas vezes eu perco. Muito objetivamente. Já fiz muitas aventuras em que perdia e perdia pela escuta do público, ou seja, por não conseguir interpretar o público, por dar a palavra às pessoas erradas e é extremamente… é penoso. Nós terminamos uma sessão e é uma sensação bastante desagradável. Porque a única vantagem é que nós quando já estamos numa atividade profissional... Este ego é das poucas mais-valias dos narradores profissionais perante os narradores amadores, que depois ficam normalmente mais tempo sem voltar a contar. E o handicap dos narradores profissionais é contarem muitas vezes e às vezes acabam por prostituir, de certa forma, os contos que contam porque repetem-nos tantas vezes, em tantos contextos que acabam por não avaliar bem o contexto ao qual estão a adaptar os contos. Neste caso, é uma mais-valia. Porque, eu ao arriscar posso ganhar. E se perder, que acontece muitas vezes nestes contextos, nós perdermos, amanhã já estamos a contar outra vez e já estamos a renovar a nossa capacidade de... regenerar a ferida. Neste caso de hoje, não foi isso que aconteceu. Eu fui feliz no arriscar. Mas pode-se sempre perguntar: “Mas porque é que tu arriscaste?”. E na pergunta porque é que tu arriscaste foi: este conto, segundo, era um conto que não podia ser primeiro, porque não podia entrar com um conto com o qual eu não tenho grande intimidade ou um grande à-vontade, para um grupo de pessoas que eu não conhecia. Tanto mais que conheciam até melhor o espaço, estavam mais enquadrados, estavam mais à-vontade, estão na sua terra, estão, estão…. E eu venho de fora. Então, mas conseguir contar o segundo conto este, que foi ao encontro dos anseios de alguns que queriam histórias brincalhonas e que, de repente, eu consigo pegar num conto não muito rodado e coloco numa situação performativa de espetáculo pelo qual eu estou a ganhar, estou enquadrado numa programação e... programação, ainda por cima, é um conto temático, eu tenho que fazer adaptar o conto, tenho que deixar sempre o tema presente, a água tem que estar clara, portanto, eu não me posso concentrar só no conto. Tenho que deixar que o elemento água se torne importante. E de repente, passar uma prova destas, um conto destes, é quase um... “Não há dúvida que este conto vai funcionar na tua boca, portanto, investe nele”. Porque, quando os contos não têm longevidade na nossa boca, nestas horas eles não aguentam a pressão. E, portanto, um teste deste pode corresponder na perda, a um dizer: “Não, isto é bom para grupos caseiros, é bom para contar aos amigos, é bom para uma mesa de café, se vier a propósito… mas não é bom para contar performativamente”. E, neste caso, aquilo que eu ganhei por ter arriscado foi sair daqui a pensar: “Não, neste conto, António, investe, ele já está a trabalhar no teu imaginário. Se ele te aparecer na boca, deixa-o, porque ele tem capacidade de andar.”