Hoje é visível, na programação cultural de bibliotecas, associações, cafés, bares, teatros e centros culturais, nas atividades curriculares e extracurriculares de escolas e infantários, bem como num variado leque de iniciativas, um interesse crescente por espetáculos de “contadores de histórias”. Ainda assim, na maior parte dos países, será difícil encontrá-los nos espaços mais institucionalizados de programação, nas agendas culturais e nos programas públicos de subvenção. O programa Lu.gar, desenvolvido pela cooperativa cultural Memória Imaterial em Alenquer, aposta inequivocamente na intervenção destes artistas. Quem são eles? O que fazem? Qual é a sua mais-valia na programação cultural de um território específico?
Os contadores de histórias, que em Portugal e em Espanha têm-se designado “narradores orais”, propõem espetáculos em que, sozinhos ou em pequenos grupos, contam histórias oralmente. O texto não é lido. Mesmo nos raros casos em que é memorizado dá a impressão de ser criado espontaneamente no próprio momento. Por outro lado, estes narradores apresentam-se ao público assumindo a sua própria identidade e referindo amiúde experiências, percursos e opiniões pessoais. Deste modo, nestes espetáculos, é invulgar ser uma personagem a dirigir-se ao público. Assim, o discurso de um narrador de corpo presente, dirigido a uma assistência efetiva a quem se solicita, regra geral, um certo nível de interação, propõe um modelo de comunicação que naturalmente se aproxima da situação conversacional. Consequentemente, a linguagem utilizada, bem como a expressão corporal, tende a ser de natureza prosaica ou esteticamente cuidada nesse sentido. Do mesmo modo, ao centrar-se na prestação do performer e no seu discurso verbal, este tipo de evento pode vir a dispensar elementos cénicos, como cenários, figurinos ou desenhos de luzes, ainda que em diversos casos não o faça completamente. Dadas estas características, este é um modelo de espetáculo extremamente móvel e versátil, o que permite a sua realização em diferentes tipos de contexto, visando públicos diversificados. Assim, numa atividade que tem lugar muitas vezes em espaços alternativos, integrada em eventos de tipos muito variados, para públicos de todas as idades e frequentemente heterogéneos, os narradores orais parecem ser capazes de se adaptar às situações, sendo esta adaptabilidade, justamente, uma das suas mais expressivas competências.
Para isso dispõem de repertórios que lhes permitem satisfazer as exigências dos contextos, adequando as suas histórias aos espaços, aos públicos e aos objetivos da programação. Em grande parte dos casos esses repertórios são constituídos por narrativas ditas tradicionais, ou seja, que têm origem ou paralelismos com patrimónios de tradição oral como contos, lendas ou romances. Naturalmente, imersos numa cultura letrada e urbana, grande parte dos narradores utilizam fontes escritas, regra geral, coleções de adaptações literárias ou de recolhas etnográficas, mas privilegiando sempre narrativas cujas sucessivas adaptações e versões configuram uma tradição que as isenta de determinações autorais: são relatos que passaram de geração em geração, simultaneamente de boca em boca e pela mão de poetas, conformando assim um património universal que sem pertencer a ninguém pertence a todos. No mesmo sentido, uma relação de completa liberdade para com os textos-fonte, como testemunha a expressão “quem conta um conto, acrescenta um ponto”, determina uma abordagem que privilegia a transmissão oral, a partilha espontânea de patrimónios populares em detrimento da autoridade do texto literário.
Neste sentido, os narradores que participam no Lu.gar são casos particulares que reforçam estas ideias: o repertório de António Fontinha é em grande parte fundado nas recolhas de contos que realizou por todo o país, nunca prescindindo de um trabalho criativo sobre diferentes versões; Ana Sofia Paiva também não abdica de um trabalho comparativo a partir do Catálogo[2] e do Arquivo do Conto Tradicional Português, compondo livremente os seus textos oralmente, em performance; José Craveiro, caso verdadeiramente peculiar e especial, é alguém que cresceu imerso ainda numa tradição oral ativa, universo de onde provém todas as suas referências e fontes, que reproduz sem nenhum recurso à escrita.
Esta descrição, ou os casos particulares destes narradores do Lu.gar, como é natural, não retrata de forma completa e abrangente a variedade de propostas artísticas que o fenómeno dos “novos” contadores de histórias apresenta. No entanto, é possível reconhecer um conjunto de tendências que, numa grande variedade de contextos geográficos, fundam práticas e discursos análogos, o que nos permite falar de um movimento artístico internacional ou, pelo menos, de diversos movimentos relativamente comunicantes. Assim testemunham vários autores ao observar o fenómeno em diferentes países, como Joseph Sobol em The Storyteller Journey: an American Revival[3], Simon Heywood em Storytelling Revivalism in England and Wales[4], Geneviève Calame-Griaule em Le Renoveau du Conte – The Revival of Storytelling[5], sobre o fenómeno francês, ou Marina Sanfilippo em El Renacimiento de la Narración Oral en Italia y España[6], entre outros.
Como atestam os títulos referidos, é fundamental nestes movimentos a ideia de um “renascimento” de práticas tradicionais de partilha de patrimónios e de coesão comunitária aparentemente extintas. Assim, numa sociedade contemporânea determinada por modelos mediados de comunicação e por um crescente individualismo, estes movimentos artísticos propõem reconstituir as realidades familiares ou comunitárias de um passado, por vezes idealizado, em que um avô contava histórias à lareira ou em que companheiros de trabalho se entretinham ao serão com contos e cantigas; enfim, realidades nas quais contar histórias era um dos principais instrumentos de coesão social e interação comunitária.
Se estes discursos e práticas revelam, à primeira vista, um carácter explicitamente revivalista, enquadram-se de forma porventura paradoxal mas muito pertinente, numa das mais interessantes tendências estéticas da arte contemporânea: aquela que torna a questão relacional o centro das atenções. Esta “estética relacional”, nos termos de Nicolas Bourriaud[7], reflete preocupações presentes em propostas oriundas das mais diversas áreas de expressão e emergem sob diferentes terminologias, como “arte social” ou “arte comunitária”[8]. Em comum estas abordagens apresentam como protagonistas as realidades sociais e culturais dos contextos, os processos criativos participativos, o questionamento dos papéis do artista e do público, o evento performativo enquanto encontro e motor de transformação social, numa estética que emerge justamente da intersubjetividade. E estes são, de forma inequívoca, os pressupostos presentes no fazer dos “novos” contadores de histórias deste Lu.gar e de outros, desde logo, pela própria ubiquidade do ato de contar histórias, pela sua linguagem não específica, pela sua autonomia técnica que nada mais exige que o encontro entre aquele que conta e os seus ouvintes, pela horizontalidade da sua forma de comunicação, pelo seu universo de referências fundado num imaginário popular e partilhado. É nesse sentido que a versátil e aparentemente prosaica prática destes artistas parece vir recuperar um espaço de proximidade, de uma relação a nível dos afetos, aspeto omnipresente nos seus discursos, como bem expressam as palavras dos narradores deste Lu.gar[9]. Neste sentido, uma programação que aposta na sua intervenção continuada num território específico, antes de mais, e a par de outras propostas artísticas, vem reequacionar modelos de produção e fruição instituídos que revelam, por vezes, uma pouco saudável autofagia. Do mesmo modo e inevitavelmente, as experiências partilhas neste Lu.gar tornam urgente uma reflexão sobre as avaliações centradas nos números de espectadores, na atenção recebida pela imprensa e pela crítica especializada, nos tempos de antena, no renome e internacionalidade dos artistas... Porque, enfim, é no campo das relações humanas, no tempo que a palavra de boca a ouvido permite, na cumplicidade dos olhares trocados que estas práticas encontram a sua verdadeira legitimidade, não apenas ao reavivar a dimensão poética da paradigmática figura do contador de histórias, mas ao confirmar a pertinência social de um artista cujo saber está em partilhar experiências, imaginários e utopias.
Luís Correia Carmelo
Faro, 13 de novembro de 2018
[1] LU.GAR tem o financiamento da DGARTES (Direcção geral das Artes) e IELT/FCSH-NOVA e apoio da Câmara Municipal de Alenquer.
[2] Isabel Cardigos e Paulo Jorge Correia, Catálogo dos Contos Tradicionais Portugueses, Porto, Edições Afrontamento e Centro de Estudos Ataíde de Oliveira, 2015.
[3] Joseph Daniel Sobol, The Storytellers’ Journey: An American Revival, Urbana e Chicago, University of Illinois Press, 1999.
[4] Simon Heywood, Storytelling Revivalism in England and Wales: History, Performance and Interpretation, Tese de Doutoramento não publicada, Universidade de Sheffield, 2001.
[5] Geneviève Calame-Griaule (coord.), Le Renouveau du Conte: The Storytelling Revival, Paris, CNRS Éditions, 2001.
[6] Marina Sanfilippo, El Renacimiento de la Narración Oral en Italia y España (1985-2005). Tesis Doctorales Cum Laude, 43, Madrid, Fundación Universitaria Española, 2007.
[7] Nicolas Bourriaud, L’Esthétique Relationelle, Dijon, Les Presse du Réel, 1998.
[8] Shannon Jackson, Social Works: Performing Art, Supporting Publics, New York, Routledge, 2011; Nato Thompson (ed.), Living as Form: Socially Engaged Art from 1991-2011, Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 2012; Grant H. Kester, Conversation Pieces: Community and Communication in Modern Art, Berkeley, University of California Press, 2013; Hugo Cruz (coord.), Arte e Comunidade, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.
[9] Ver as entrevistas a Ana Sofia Paiva, António Fontinha e José Craveiro
Luís Correia Carmelo