Julgamento do Bacalhau - Transcrição

 

 

Intervenientes por ordem de apresentação: José Lourenço (JL), Álvaro Gomes (AG) e Virgílio Morais (VM)

 

JL: A revista remonta... A revista, aqui em Alenquer, tem grande tradição. Evidentemente que as pessoas se lembram melhor é das revistas do Manuel Gí­rio.  Portanto, já em meados do século XX. Mas, o teatro de revista tem raí­zes muito mais profundas no tempo, aqui em Alenquer.

Por vezes chamavam à  revista, Comédia de costumes também, não é? Porque que se parodiava a vida de então, na Vila. Mas isso já se fazia também noutros espetáculos mais populares. Espetáculos de rua.  Já se fazia, portanto, nas Cegadas.

AG: Que se faziam pelo Carnaval. E que ainda hoje se fazem. Ou, pelo menos no ano passado ainda se faziam, ali em Refugidos. No ano passado ou há dois anos, em Refugidos ainda se faziam.

Quase sempre ter a ver, portanto, com a crí­tica social. E com a polí­tica, na altura, já. Portanto, isso...

Houve muita coisa que se fazia antes do 25 de Abril nas Cegadas. A censura ainda passava, não sei como. Se calhar, ainda houve pessoas que tiveram problemas com essa história. Era uma das maneiras, um escape de se dizer coisas meio encapotadas que era onde estava se calhar, às vezes... Aliás, a graça da revista está precisamente no que se quer dizer. No que se disse, no que se quer dizer, sem estar lá escrito. O chamado subtexto. E as Cegadas tinham um bocado esse espirí­to. Um teatro muito popular.

JL: E o Enterro do Bacalhau que, no fundo, também era um veí­culo para a crí­tica social.

VM: Exclusivamente, Alenquerense.  É mesmo de Alenquer. Porque há o Enterro do Bacalhau. Esse já é outra coisa.

AG: Este é um teatro muito popular, que também é... Isto, penso que a origem disto, que vem de Alhandra. E é o tio do Gí­rio que traz essa ideia de Alhandra e que começa a fazer cá em Alenquer. E depois é o Gí­rio que agarra nisto.

É um teatro muito popular em que também que se falava das pessoas.

Havia as testemunhas de defesa e as testemunhas de acusação. As testemunhas de defesa eram o Vinagre, o Azeite, as Batatas. Todos eles, amigos do Bacalhau. E depois havia as testemunhas de acusação. Que eram, portanto... sei lá... Vamos chamar, as forças do poder. E depois, no meio de isto tudo, havia o Juí­z, os advogados de defesa, os advogados de acusação... Tinha uma carpintaria assim.

E, depois, o... o Bacalhau era julgado no fim. E era condenado. E era, quase sempre, era morto. Isto chamava-se precisamente o Julgamento do Bacalhau porque as pessoas estavam fartas de comer bacalhau, de comer peixe durante... acho que a Quaresma são quanto? Quarenta dias, não é? Acho que é isso.

E, então, isto... era muito giro. Isto juntava... Hoje em dia, era uma coisa incomportável de fazer, porque... Isto era feito por quase todas as colectividades do, não sei se de Alenquer, se do Concelho. Em que isto tinha uns carros alegóricos e as chamadas Batalhas de Flores.

Era um Carnaval fora de época, vamos lá. E que depois ia acabar, de facto, com esse teatro popular.

Em que, em termos de guarda roupa, aquilo era sempre um bocado complicado. Porque tinha desde o século XVIII... os guardas, por exemplo, que andavam com um... prendem o bacalhau e não sei quanto... Tinham as fardas do século XVII, século XVIII. Mas, depois o Juiz já tinha um fato completo.

Portanto, aquilo era mesmo teatro popular.

E depois, havia também algum travesti. Havia uma personagem que era a Maria Mal Montada. E essa vinha de burro. E a Maria Mal Montada, quase sempre era um travesti. Quase sempre era um homem que fazia isso. Era muito giro. Uma coisa que se perdeu. Eu só fiz uma vez. Só participei em 80 e... Penso que em 89, que também foi a útima vez que se fez. E, inclusivé, isso era incomportável porque aquilo levava... Era muito caro fazer uma coisa dessas. E estamos a falar... hoje em dia fazer uma coisa dessas  a um Domingo de Páscoa, se calhar, não estava cá ninguém. Na altura, as pessoas não tinham grande sí­tio para ir e, então, era tradição vir a Alenquer ver o  Julgamento do Bacalhau.

JL: O Bacalhau era julgado porque tinha sido o grande vilão da Quaresma, não é? A Quaresma impunha um jejum e esse jejum obrigava a comer muito bacalhau. As pessoas quando chegavam ao fim da Quaresma, já estavam fartas de comer bacalhau.

Também havia... vamos lá ver, também havia uns truquezinhos para aliviar o jejum da Quaresma. Por exemplo, aqui em Alenquer faziam-se os Bailes da Micareme. Hoje já ninguém fala nos bailes da Micareme, que aconteciam a meio da Quaresma. O Micareme é uma palavra que foi aportuguesada que vem do francês. Do "Demi-carême". Ou seja, do meio da Quaresma.

E aí­, nesses bailes... Esses bailes eram uma oportunidade para... para se cometer todos os desvios em relação àquilo que a Igreja impunha como época de expiação e de jejum. Portanto, aí­ divertia-se e comia-se.

Portanto, o Enterro do Bacalhau e o Julgamento do Bacalhau em Alenquer, ocorria sempre na Páscoa. No Domingo de Páscoa. Era antecedido de um cortejo. Onde desfilavam carros alegóricos.

Portanto, havia sempre o carro do Tribunal. Havia o carro com o Trono da Páscoa e da Quaresma. Cá temos, as duas referências, não é? Religiosas, à  época. Depois, o carro dos Temperos. Porque o Bacalhau tinha os seus temperos. O alho, a cebola, a pimenta... E, depois, o carro das Testemunhas. E, por fim, também havia o outro carro... Por vezes, havia o carro que levava o Bacalhau. Com o Carrasco, não é? Que havia de... No fim, ele era condenado, não é? E o Carrasco executava a pena.

VM: Havia um cortejo pela Vila em que eram representados o alho, a cebola, o azeite, o vinagre, Quer dizer, cada personagem. Está a ver, eu fazia de Varina. Eu era Varina.

JL: Eu recordo-me, portanto.... Não se fizeram assim também tantos Julgamentos do Bacalhau quanto isso. Olhe, nos anos 50, fez-se em 55 e 56. No antigo campo do Sporting Clube de Alenquer. O desfile aqui pelas avenidas e depois a representação no antigo campo de futebol do Sporting Clube de Alenquer, ali em Santa Catarina, onde está hoje o Tribunal. E depois, fez-se um em 1966, que eu me lembre. E depois, já depois do 25 de Abril, também já se fez outro, aqui em frente ao Sporting. E havia também sempre o carro dos Pescadores. Tinham sempre cá um que davam vida ao carro dos Pescadores, um Rancho. Na primeira representação em 1955, o Rancho era local. Foi feito com amadores locais. Mas em 1956, já foi um Rancho de Vila Franca de Xira. E em 1966, foi o Rancho Tá-Mar da Nazaré. Portanto, no fim o Rancho exibia-se e havia toda uma festa.

Eram sempre Ranchos ligados à  atividade piscatória. Lá está, temos Vila Franca de Xira, avieiros do Tejo. E Nazaré, o Tá-mar porque estava ligado também a uma população piscatória, embora não tivesse muito a ver com.... sempre havia, um ou outro que ia para a pesca do Bacalhau.

Portanto, eram representações muito engraçadas que, de facto, se ria. Se ria e muito. Ao fim de uma época de expiação que era a época da Quaresma.

VM: E era uma festa muito engraçada que, aliás, tenho pena porque agora tudo é subsidiado  também pela Câmara, não é? A Câmara teria mesmo que intervir na, nessa festa. E eles não são lá muito vocacionados para o Julgamento do Bacalhau. E perde-se uma tradição valiosí­ssima desta Vila.

AG: Eram texto que eram escritos, portanto, todos os anos aquilo era remodelado. Eu lembro-me que este útimo, o Gírio já começou a utilizar aquelas personagens das telenovelas. Então, eu lembro-me que a última, que havia um, um tipo que dava assim ao relógio... O Sinhozinho Malta. Acho que era isto. Ele depois guiava-se nestas histórias e adaptava isto à  piada popular.

JL: Os sucessos do Julgamento do Bacalhau passavam um pouco sempre... Havia sempre um ponto alto nos Julgamentos do Bacalhau. Que era o discurso do Pregador. Em que ele parodiava. Havia a figura do Pregador, em que ele parodiava a vida social da Vila de então. Falamos no concreto em determinadas figuras que, ou na polí­tica ou no meio social, davam nas vistas por um motivo ou outro.

Portanto, houve um homem que foi exí­mio nisso. Quer a escrever, quer a ensaiar, quer a representar, quer a fazer os discursos, que foi o Pili. O Manuel Rodrigues Gíri­o.

VM: Era tudo em verso. Olha, recordo-me a última vez que eu fiz o o último Bacalhau. Fazia de Pregador. E, então era assim. Tinha uma saí­da assim:

"Meus irmãos,

ides ouvir o meu sermão

de Santo António aos Peixes.

E se não escutares o que eu digo,

irmãos amigos,

depois não vos queixes.”

Eram sempre em verso. Era tudo em verso.

Olha, tenho aí­ um amigo, um amigo meu, que também fez alguns quatro ou cinco Bacalhaus comigo. Que é o Zé da Área. Da parte que diz respeito ao Bacalhau, tem uma memória de trechos, sei lá, antigos, do arco da Velha.