António Guapo

O que é que atrai um pintor?

Alenquer é uma terra interessante… tem esse valor extraordinário que é o valor da luz, pela sua exposição muito especial, virada a sul… com uma colocação em anfiteatro … há um equilíbrio de formas, um recorte, o pitoresco (o digno de ser pintado).

A minha pintura, aquilo que eu pinto de Alenquer, são sempre espaços que têm um conteúdo histórico.

Transcrição

AG:  Aqui fiquei, aqui convivi. E convivi com quem? Entre as pessoas com que eu convivi, logo inicialmente na Vila, foi com o João Mário. Eu nessa altura residia na Vila. O João Mário estava nos inícios, também, da sua formação. Ainda saímos algumas vezes a pintar.

Eu casei-me. Ele casou-se.

Depois... Às vezes, até íamos os dois pintar e as senhoras ficavam na conversa. Foi talvez o período em que pintei mais, nessa altura.

Este quadro que aqui tenho foi pintado nessa altura. Era ainda um quadro muito influenciado pelas... por certas formas não tradicionais de arte, porque havia uma certa deformação naquilo que eu pintava. Propositadamente, deformava as coisas. Mas depois tudo isso me passou. Comecei a me interessar por outras coisas. E estava, enfim, agora empenhado noutro tipo de pesquisa, noutro tipo de trabalho. Noutro tipo de estudo que, afinal, foi aquilo que orientou o resto da minha vida, foi escrever sobre o Concelho de Alenquer.

Logo que cheguei cá... passado talvez dois, três anos... E ainda ligado ao cinema. Arranjei uma máquina, nessa altura, uma máquina de oito milímetros. E procurei fazer um filme sobre Alenquer. E qual foi, qual era o pretexto?  Aliás, nem sequer era inédito. O Oliveira já tinha feito isso lá para cima, para o Porto. Uma coisa que seria, mais ou menos, "O pintor e a Vila". E era precisamente um pintor que ia à procura dos... dos sítios pitorescos, passo o termo, pitorescos. "Pittore". Aos sítios pitorescos com um cavalete. E começava a esboçar.

Porque na realidade, Alenquer tinha esse... tinha e tem. Tem esse valor extraordinário que é o valor da luz. Pela sua posição muito especial. A maior parte da Vila está virada a sul, virada ao sol. E aquilo que mais... que mais impressiona na Vila, precisamente, é a presença do sol. E essa presença do sol dá, digamos, azo a que os pintores que por ali passem, se... fiquem presos para essa realidade plástica que é precisamente o edifício, o local. O sol. O céu. São valores, quer dizer, extremamente importantes para qualquer pintor que passe por ali. E, nomeadamente, para um pintor por excelência de Alenquer, que é o João Mário. O João Mário tem realmente uma capacidade e um... e uma perceção da luz que são extraordinários. São perceções, são qualidades extraordinárias nele. Que encontram realmente em Alenquer, enfim, essa... essa qualidade plástica. Que permite encontrar a cada canto, a cada recanto, digamos um valor plástico extremamente importante.

A minha pintura, aquilo que eu faço de pintura... Talvez não seja por acaso. Que eu tenho pensado muito nisso. Aquilo que eu pinto de Alenquer, ou que tenho pintado de Alenquer, são sempre espaços. além do seu enquadramento - cénico, bonito, pitoresco - tem também um conteúdo histórico. Eu pintei a zona velha da Vila.

Tenho outro lá em cima. O Arco dos Pinéus, outra zona velha. Tenho a Torre da Couraça. Outra zona com interesse histórico. Tenho lá em cima também o Largo do Terreirinho. Outra zona medieval.

Portanto, eu penso que aquela minha tineta para... para a banda da evocação histórica, da escrita sobre temas históricos. E digamos estas minhas passagens efémeras pela pintura encontram-se, digamos, na temática que eu normalmente escolho para... para os meus temas de pintura. Os pintores, quer dizer, quando escolhem estes locais, escolhem-nos porque eles são plasticamente interessantes.

A composição está lá toda. Os volumes... O equilíbrio do céu e digamos das outras partes. Se há presença de verdes ou não há presença de verdes. Ou árvores ou não. Tudo isso está bem equilibrado. Nalguns temas, desses temas que eu falei, o quadro já lá está. É só passá-lo para o papel. Ou para a tela.

Eu já não sei é se pinto, se desenho. Pastel, para mim, é mais desenho do que pintura. É giz, pronto. Eu trabalho com giz. Dá-nos uma ideia do transitório. Tudo aquilo é pó. “Tu és pó e em pó te hás de transformar”. Também a pintura de pastel é pó. Se eu sopro, se... se eu soprar, se eu soprar aquilo que estou a fazer, desaparece quase.  Ficou lá apenas um tom ténue.

É mais cómodo estar aqui, ler um livro, escrever umas coisas, do que propriamente, ir lá para cima. Indo lá para um sítio qualquer. Ou para aqui ou outro sítio da casa. A pintar ou desenhar. De maneira que, por vezes, pronto. Passam-se períodos longos de tempo. Entretanto, os meus filhos dizem: "Pai, eu precisava de um quadro numa parede que eu..." E lá vai.  Lá vai, então, mais outro quadro. É assim. Aliás, tenho pintado ultimamente para os filhos.

Encomendas. São encomendas, exatamente.

A natureza do pastel que é um giz que se aplica sobre o papel, se for lá fora, se está vento, lá se me vai o pigmento todo. Portanto, eu trabalho sempre em casa.

É engraçado. Eu... Na minha pintura, não há nunca pessoas. E isto por uma razão.  Quer dizer... As coisas são todas efémeras. Mas, dentro do quadro, aquilo que é mais efémero são as pessoas. O "espírito do lugar" necessariamente pesa. O pintor pode ter necessidade, e muitas vezes tem de fazer esta... ter esta capacidade de tirar de lá um poste. Ou acrescentar uma árvore. Para compor, talvez... Para... intervir nessa composição, digamos, na composição do quadro. E se calhar de alguma maneira, dar-lhe o espírito. O espírito do lugar que ele sente que faz falta aqui.

É assim... Às vezes, há necessidade, digamos, de modificar. De modificar a pintura. Torná-la mais pitoresca. Mais... plasticamente, mais aceitável. É outra função do... é outra função, não é? é outra... é outra possibilidade do pintor. O pintor tem essa possibilidade de fazer isso. É engraçado, que eu quando estou a pintar a parede, eu podia, digamos, com uma passagem do giz, quer dizer, tapar os buracos que a casa tem. A casa está velha, tem buracos. Mas antes pelo contrário. Se calhar até abro mais buracos. Porque essa... essa maneira de alterar a textura à parede, dá-me um prazer muito grande. Quer dizer, pronto. Estou a envelhecer aquela casa.

Se calhar, ela fica mais ao meu gosto.  Se calhar, prende mais os olhos de quem vir esta pintura. De maneira que eu tenho sempre essa preocupação, digamos, de marcar bem a textura das paredes. Porque, parece-me que é um dado que as paredes devem... Eu que estou a pintá-las, devo reter essas marcas. São marcas do tempo. São marcas da passagem do tempo. É uma mania. É uma mania, mas sempre que há paredes, eu vou à procura de paredes velhas.