Águas, rua das Pedras Negras

... era uma verdadeira maravilha a existência de fábrica tão grandiosa, nos seios da terra...

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Era extraordinário tudo aquilo. Artur olhava aquelas enormes paredes, fabricadas de uma excelente argamassa, que resiste aos séculos (…) e alongava a vista pela vastidão das imensas abóbadas, que em diversos sentidos se prolongavam na extensão de mais de trinta metros, (…)

Nalguns pontos as paredes eram cobertas de tijolos de cores variadas, e muitas vezes de grandeza disforme, predominando o vermelho, o preto e o branco. Para ele, se era uma verdadeira maravilha a existência de fábrica tão grandiosa, nos seios da terra, talvez a uma profundidade de trinta metros abaixo do solo, não menos o intrigava saber porque artes se introduzira ali o Pinga azeite. (…)
Pinga azeite
agitava triunfante o seu archote em todas as direcções, como querendo que ao seu amigo não ficasse dúvida alguma da realidade de tudo que estava presenciando.
 - Nós contemplamos debaixo destas abóbadas, dizia ele, milhares de gerações. Aqui foram as termas dos Cássios, rapazes finos e asseados, para os quais o Tejo não era bastante à limpeza das suas médias carnes. (…)  Sabe, meu amigo, continuou ele, quem eram estes Cássios? (…) três irmãos que viveram pelos anos de setecentos e tantos, da fundação de Roma, e uns cinquenta antes de Cristo. Note-se, porém, que já antes dos três manos, existiam termas neste mesmo lugar. (…) Compreendem um espaço de cento e cinquenta metros, de sorte que se estendem até para lá da Rua da Prata. Eles que gostavam tanto da água, é que por certo não eram amigos do vinho.

Artur podia consolá-lo sobre este ponto, nomeando alguns cônsules e patrícios do grande império, que sacrificaram a Baco, mas todo o seu empenho agora consistia unicamente em saber como o Pinga azeite fora descobrir aquela preciosidade arqueológica, (…) Procurou nas algibeiras, e achou o que desejava — uma porção de fósforos. (…) conseguiu acender uma pequena fogueira, ao clarão da qual lhe foi permitido fazer uma ligeira ideia da situação em que estava. Encheu-se de ânimo, e avançou com rapidez por uma espécie de corredor lodoso, cuja extensão parecia não ter fim. Mal havia, porém, dado uns duzentos passos, quando lhe pareceu ouvir um ruído singular. Aplicou o ouvido, e reconheceu que a bulha provinha de alguma grande queda de água, por certo das nascentes do Castelo, de que ouvira falar às vezes de um modo vago e misterioso.

Deitou a correr por ali fora, tomando todas as precauções, para que a luz não se apagas- se com as correntes do ar, (…) De repente parou. O sussurro das águas era cada vez maior. Chegara ao termo da galeria subterrânea, e tinha na sua frente duas passagens praticadas na parede, para as quais se podia subir por escadas magníficas de mármore de Itália, cada uma com cinco degraus espaçosos. Tomou pela direita. O deslumbramento e a curiosidade apoderaram-se então do seu espírito. Cuidou-se transportado a um mundo novo. Era magnífico o espectáculo que se apresentava aos seus olhos. Estava numa vasta galeria sustentada por colunas colossais, tendo ao centro um grande tanque, em forma de meia laranja, servindo-lhe de cúpula e remate o seguimento de um elipse ou esferóide. (…)
(…) Pinga azeite, (…) continuava não só ignorando como entrara para ali, mas, o que era pior, sem saber por onde deveria sair. Foi avançando ao acaso pela direita, tendo muitas vezes de caminhar de rastos para passar de uns nichos para os outros, e assim sucessivamente, até que num deles achou uma espécie de corredor semelhante àquele por onde penetrou nas termas. Passou logo a examiná-lo. (…) Havia uns degraus muito íngremes, praticados na terra, que se desfaziam às vezes debaixo dos seus pés, mas ele achou que tudo quanto fosse subir era aproximar-se mais do ponto de
partida, e portanto encheu-se de coragem, e foi trepando por aí acima com a agilidade de um marinheiro. A meio caminho da perigosa ascensão, nova contrariedade veio assaltá-lo. A luz apagou-se-lhe, sepultando-o de novo nas trevas, e agora numa posição terrível, porque um pé mal posto, bastaria para o precipitar da altura enorme em que já se encontrava. (…)

Já se havia rasgado todo naquela ascensão perigosíssima e quase desesperada. Gotejava sangue de mais de uma arranhadura profunda que fizera nas carnes, mas agarrava-se ainda cada vez com maior ânsia, e agora sobretudo, mais animado, porque divisara por cima da sua cabeça uma claridade fraquissima, destacando-se como uma estrela naquele fundo negro, (…)
O ponto luminoso tornava-se cada vez mais distinto, e seguindo sempre nessa direcção, achou-se enfim em caminho plano, que ia apertando em forma de funil, de modo que deitando- se de gatas, pode ver, não muito longe, a claridade do dia. Imagine-se, porém, com que alvoroço ele, ao cabo de tantos esforços, pôde saudar o sol, coando-se pelas fendas de uma porta carunchosa, que dava para o cubículo do vão desabitado de uma escada. Não quis saber de mais nada. Aplicou-lhe com ânsia desesperada os seus vigorosos braços e fê-la saltar dos gonzos. Estava portanto livre. Voltava de novo à vida. (…) Então, pode reconhecer que a escada em que se encontrara, aliás espaçosa, pertencia a um prédio grande, de construção recente ao terramoto, e achou-se em plena rua das Pedras Negras.

LEITE BASTOS, “TRAGÉDIAS DE LISBOA” (1877-79)
MY SHADOW WALKS HOME WITH ME Música: Sara Carvalho (2011) | Intérpretes: Helena Marinho (Piano), António Carrilho (Flauta) (2015)