Largo das Portas do Sol

Uma cidade da felicidade banhada pelo deus sol até hoje...

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E que nome mais belo para dar a um largo? As portas por onde o sol entra, o sol que sempre banhou este lugar e a cidade. Se recuássemos há cerca de 2000 anos talvez fosse possível ver neste local verdadeiras portas, assinalando a entrada na antiga cidade romana de Felicitas Iulia Olisipo. Uma cidade da felicidade banhada pelo deus sol até hoje. Até meados do séc. XX este local era irreconhecível. O espaço que hoje conhecemos, enquanto largo mais ou menos desafogado, não existia e uma série de edificações ocupavam o local. O adro junto à estátua de São Vicente encontrava-se ocupado por casas baixas.

Padroeiro eclesiástico da cidade, com a sua barca na mão, pois foi numa que chegou à cidade no longínquo ano de 1147, quando a cristandade conquistava a cidade aos mouros. Vemos uma casa ao fundo, junto à Rua de São Tomé que acabámos de deixar e outra, situada quase ao pé da estátua do santo. Entre elas abria-se, à esquerda, o Beco de Santa Helena que descia para o casario inferior do Bairro de Alfama. Santa Helena, a padroeira dos arqueólogos, pois foi em busca da Santa Cruz de Cristo e a trouxe para seu filho, o imperador Constantino. Desses tempos restaram as portas de entrada na cidade, as chamadas Portas do Sol, as quais, por sua vez, deveriam ser herdeiras de outras portas que marcariam a entrada no recinto sagrado da antiga cidade romana. Nada existe, nada restou dessas outras vidas e de todos esses passados feitos pelos homens. Parcos vislumbres, no entanto, subsistem nesta nova cidade remodelada, reconstruída, actualizada e embelezada. Abarquemos a vastidão dos bairros que se estendem aos nossos pés, olhemos para o rio que nos leva ao mar, as palmeiras trazidas do outro lado do Atlântico, o casario amontoado, albergue de marinheiros e rufias, de crianças descalças e risos, e fados e gritos, e pregões de varina a subir e a descer, as calçadas íngremes que as levam e trazem do rio. Depois de tudo vermos, voltemo-nos para a colina.

À nossa frente desenvolve-se o antigo Palácio Azurara, pintado de cor forte a que chamam “vermelho sangue de boi”. Uma cor escura e forte que faz jus à construção. Este palácio encosta à Cerca Moura, ou Velha, pois já o era quando foi construída, a que protegeu a cidade dos muitos ataques de outros povos ao longo das suas muitas vidas. Do lado esquerdo, a sul, conseguimos ver uma torre de cantaria amarela, cor suave e quente da pedra com que foi feita e que atesta a sua antiguidade. Será do séc. XII e já herdeira, talvez, daquela outra de época romana a qual, embora não encontrada, se pressente no pano de muralha que segue para as escadinhas da Rua Norberto de Araújo que se vislumbram a sul. Todo o palácio encosta àquela muralha, aproveitada quando já não tinha préstimo. Se olharmos para a direita vemos que o palácio, no corpo hoje ocupado pela Fundação Ricardo Espírito Santos Silva e onde funciona a Escola de Artes e Ofícios, se prolonga até ao fim do largo fazendo esquina com outra construção, mais recente e menos nobre. Por trás, em segundo plano, vê-se uma outra torre, branca em cima, mas da mesma cor bege, quente, na sua base. É a outra torre onde o lanço de muralha iria encostar. Por ela passámos quando atravessámos o Pátio de Dom Fradique e pertence ao Palácio Belmonte que, desta feita, a aproveitou para, também ele se encostar e descansar o seu porte nobiliárquico. Como tudo na vida, também as cidades se transformam, mas nunca desaparecem. Podem ficar invisíveis, escondidas aos olhos de todos, mas esse é o prazer de as percorrermos sabendo-as ouvir. Denunciam-se sempre da forma mais simples e à vista de todos.