(…) Na Rua das Damas, a rua estreita, mal calçada, onde as seges batiam com barulho de ferragens ve- lhas, evocareis as damas da Rainha que ali moravam, saindo nas andas a caminho do Paço. (…) Na janela baixa de grades partidas, no muro de um quintal abandonado e triste, evocareis o romance de amor de D. João V, quando ele, por noite negra, embuçado numa capa, vinha falar a uma linda burguezinha, que às escondidas doutro namorado, à janela lhe aparecia. E dessa aventura, em que D. João V ia perdendo a vida na espada traiçoeira do namorado da linda burguezinha, se levantaram os mármores, os quadros, os bronzes da rica igreja do menino Deus, como promessa do Rei, naquela hora em que, na rixa da viela, vira a morte de tão perto, promessa a um menino Jesus de uma velhinha que ali morava e ao qual o Rei ao passar rezava sempre…
Damas Varinas
A Rua das Damas
Tem dez burguesinhas
Guardadas, mandadas
Por santas velhinhas
Mas mais dez mil damas
Rezam outras sinas
Patinham as lamas
Vendendo
sardinhas
Peixeiras, saloias
Catraias meninas
A Rua das Damas
Tem dez mil varinas
Coradas, rodadas
Por saias velhinhas
Está há pouco tempo em Lisboa? (…)
Há muito pouco tempo, há dois meses.
Logo vi, eu nunca a encontrei no meu caminho nenhuma vez, porque uma só vez que a tivesse encontrado não a esqueceria jamais.
Não, eu saio muito pouco.
Mora para estes lados?
Nada, moro daqui muito longe.
Muito longe?
Sim, muito longe!
Onde?
Lá para o Castelo.
Para o Castelo?
Sabe onde é?
Perfeitamente.
Conhece aqueles sítios?
Como os meus dedos (…)
O quê, mora para lá também?
Não, não moro para lá, mas vou lá muitas vezes.
Eu moro ao pé do Largo do Contador.
Do Largo do Contador! (…)
Sabe onde é o Largo do Contador-mór?
Sei.
Eu moro mesmo ao pé, na rua que lá vai dar, que tem um arco.
A rua das Damas, então?
Exactamente, na rua das Damas.
Mora na rua das Damas? É boa! Nunca lá a vi.
Porquê? Passa por lá?
Passo todos os dias, duas ou três vezes.
Tem graça. Nunca o vi.
Nem eu.
Não admira, eu nunca estou à janela.
Em que sítio da rua mora?
Quasi ao fim, ao pé do Arco, do lado esquerdo indo para lá.
Belo, agora já sei, hei-de olhar.
A que horas passa, para eu o esperar?
Passo já, se me permitir que eu a acompanhe.
Ah! Isso não, de maneira alguma (…)
Porquê?
Porque está lá o meu marido agora.
O seu marido?
Sim.
É casada?
É claro que sou, se não não tinha marido.
Ah!
Admira-se de que eu seja casada?
Não, não me admiro.
Acha muito extraordinário que eu encontrasse alguém que me quisesse? (…)
De modo algum.Também eu a queria.
Muito obrigada.
E também eu a quero.
O quê? casava comigo?
Oh! se casava!
Isso diz o senhor porque eu já sou casada.
Enviuve e verá! (…)
Ora adeus, não esteja a brincar comigo!
Não estou a brincar, falo sério.
Então passa por lá?
Passo.
Quando?
Quando quiser.
Amanhã aí pela…
Não, amanhã não…
Então depois…
Não, hoje.
Hoje?
Sim, hoje ainda.
Meu marido está em casa, já lhe disse.
É verdade, que raiva! (…)
(…) são já nove horas; o meu marido está à minha espera para ceiar.
Deixe-o esperar mais um bocadinho (…)
Não pode ser, ele, coitado, precisa de ceiar cedo porque tem de se levantar cedo também. Às três horas da madrugada há de estar na rua (…)
Às três horas? (…)
Sim. Sai sempre antes das três para ir para a Ribeira esperar os barcos, assistir à descarga do peixe.
E a que horas volta?
Ah! Lá para a uma ou duas horas da tarde.
Belo! Já sei a que horas hei de lá passar por lá hoje.
Hoje?
Sim, hoje ou amanhã.
Então é amanhã ou hoje?
Isso depende da maneira de contar o dia. Contando-o até ao romper do sol é hoje, contando-o até à meia-noite é amanhã.
Não percebo (…)
Seu marido sai às três horas da madrugada, não é assim?
Um bocado antes ainda.
Pois eu irei à rua das Damas um bocado depois.
IGNOTUS, LISBOA
TRISTE (1916)
ANA SOFIA PAIVA, “DAMAS VARINAS”
INÉDITO (2021)
GERVÁSIO LOBATO, O GRANDE CIRCO
(1893)