Mas há peões e peões, e às vezes até compreendo os motoristas em fúria. É que há alguns que atravessam as ruas serenamente, olhando em frente, sem um sobressalto, como se vivessem no tempo dos car- ros (raros) puxados por cavalos (…) — nesse instante, o cavalo solta-se da tipóia, volvida táxi, sai em prantos da viatura a tal Estefânia que, repreendida pela Irene Lisboa, larga mão do pequeno Saramago que vai distraído com o mais recente fascículo de Maria, a Fada dos Bosques. São imediatamente abalroados pelo bando de faias e rufias mai-la fadistagem em peso da Mouraria que marcha atrás da Cesária, da Severa e da tal Macheta a desancar no Vimioso. Uma tourada. A Irene pega no Saramago ao colo, avista o José Gomes Ferreira com o José Rodrigues Miguéis à conversa no miradouro e corre até eles, porém, com dificuldade, pois pelo caminho esbarra com o Aquilino, o Bemposta, o Patarroxa e o grupo do Golpe do Elevador da Biblioteca aos gritos Viva a Revolução, Viva!. Embrulham-se com a D. Maria Pia ainda vestida em traje de dominó, corteja- da pelas damas de D. João V e um séquito de peixeiras, varinas e camareiras, a rapariguinha das violetas, a ceguinha do tabaco apoiada pelo Custódio e pela malta da Voz do Operário, o Zé Má- rio de cigarrilha, a Natália com a sua boquilha e tudo em corrente livre em direcção ao rio. Aglo- meram-se ali, gente que nunca mais acaba nem se sabe de onde vem — parece que nascem de- baixo das pedras, diz o Elias, a ver se avista o Marceneiro entre a multidão, eles vêm do chão… A Maria Cotia bamboleia as águas, com um cântaro à cabeça, o Bocage achega-se a ela mas ela é que não se deixa ficar, tira daqui as manápulas, que esta preta não é para ti. D. Sancho I lambuza a Ribeirinha e levanta-lhe as saias, o Gabriel, o Santiago e os meninos da Escola do Paraíso ati- ram pedrinhas aos amantes, incitados pelo Menino Jesus verdadeiro que, à cavaleira de Alberto Caeiro ri a bandeiras despregadas. Juntam-se à molhada as gaitas dos vaqueiros, dos porqueiros e dos zagais de Mestre Gil, com os seus discípulos de todos os séculos glosando décimas ao desafio, fazendo por esta cidade o que nunca ninguém fará. Chegam os poetas. Os da Rua da Saudade vão distribuindo os figos do senhor Armando da fábrica de brinquedos e é ponto assen- te que toda aquela gente veio para ficar. O Ary começa: Soneto escrito na morte de todos os mili- tantes de esquerda assassinados pela PIDE — Vararam-te no corpo e não na força … Vêm subin- do a ladeira, atrás do eléctrico, em procissão, centenas de romanos de chinela e roupão acaba- dos de sair das Termas dos Cássios. Cláudia Quinta traz na mão a deusa Cibele, magna mater, coloca-a no centro da praça e o cortejo de mulheres de vida difícil da Irmandade de Maria Mada- lena inicia os cânticos num longo murmúrio que faz a terra estremecer. Irrompem, em chamas, Ofiúsa, as Tágides e as mourinhas encantadas em torno de uma pedra negra onde um poeta de rua se prepara para cantar. Do eléctrico desce então António Gedeão e diz: Havia no meu tempo um rio chamado Tejo que se estendia ao Sol na linha do horizonte. Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia exactamente um espelho porque, do que sabia, só um espelho com isso se parecia.
A multidão silencia, de olhos postos no rio. O espectáculo vai começar.
Fermoso Tejo meu, quão diferente
te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a
mim contente.
A ti foi-te trocando
a grossa enchente
A quem teu largo
campo não resiste;
A mim trocou-me
a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!
De uma das sombras de Fernando Pessoa, maestro
invisível desta breve encenação, surge Bernardo Soares,
o ajudante de guarda-livros da Rua
dos Douradores, que inicia a narração do auto.
Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de pais longínquo. A música tornava
familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha
com ele semelhança alguma. A canção
dizia, pelas palavras
veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando
com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase
de rua.
Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem.
Oh, quem me dera
Que fôramos
em tudo semelhantes!
Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás
a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.
O povo reunido
ouvia-o sem grande
motejo visível. A canção era de toda a gente,
(…) Era um caso de rua, e todos reparámos
que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão.
Ficou parado um tempo por detrás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou. Ninguém
disse nada. Então o polícia
interveio.
E interveio mesmo: um carro-patrulha da PSP com sistema de alta voz a fazer cumprir as ordens
decretadas pelo estado de emergência. Cambada de irresponsáveis, ponha a máscara,
siga por esta linha, saia de cima dessa pedra, senhora, não toque na vedação se faz favor, ah, mas é que nós já estamos mortos, e nós somos personagens literárias, olhe, desculpe,
senhor agente, isso também se aplica a mim?, é que eu sou uma figura mítica, não há excepções para ninguém, mas está
tudo doido?, a senhora não vê televisão?, o R está altíssimo, psst, menino, distanciamento social, etiqueta respiratória, recolher obrigatório, tudo daqui para fora, andor daqui já!
E lá foram dispersando todos pelas
portas visíveis e invisíveis dos seus
tempos. Num repente, o Largo ficou deserto.
Foi então que ela chegou.
A velha Ana, Ana de Alfama. Vinha, como de costume, do Casão Militar, ao Campo de Santa Cla- ra, onde tinha ido receber os panos para os fardamentos. 90 anos de mulher e lá vai ela, sem pa- rança. Se lhe tiram a costura, morre. Pisa a calçada com firmeza. Chegando
ao miradouro, não se detém.
Para quê? É dela, o rio. O casario, a muralha, a pedra. Vê Lisboa sempre, olhando para dentro. Onde é que a senhora vai? Eu moro aqui, senhor guarda. Aqui, onde? Rua Norberto
de Araújo, aqui a meio das escadinhas. Vive sozinha? Nasci aqui, senhor. Não se importa,
saía-me da frente, vou carregada, já vê, e tenho muito que fazer. Faça favor, veja lá, não caia. Quem? Eu? Isso é para quem anda lá nas alturas.
Eu fico aqui ao rés do chão.
Entrar em casa, pousar o fardo. Oração a Santa Luzia para aguentar o serão à candeia, uma velinha a Santo António e a vida segue. É Lisboa, segreda Miguéis, uma realidade em si, e será preciso tê-la
conhecido e vivido nela para bem a compreender e amar.
ANA SOFIA PAIVA, “ANA DE ALFAMA”, INÉDITO
(2021)