Ana de Alfama, Largo das Portas do Sol

.... Fermoso Tejo meu, quão diferente 
te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,

Clar
o te vi eu já, tu a mim contente.
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A corrida não foi longa. Mal o táxi volvido tipóia entra na Rua de São Tomé, vindo da Travessa, um pouco mais adiante atravessam-se-lhe à frente do cavalo dois tocadores de gaita-de-foles vindos do Beco de Santa Helena. Um, cego; o outro, a fingir de mudo. Vinham tocando, acaba- dos de saltar das “Mil e Uma Histórias” de Júlio César Machado, da casa da irmã daquele que andava de mudo a pedir esmola, moradora no número 4 do Beco, casada com um grilheta, que, de dia, anda nas obras da câmara, e de noite vai dormir ao Aljube. O cavalo, claro, sobressalta-se com a chiadeira das gaitas e só não acaba tudo à pancada porque, de repente, a Emília Bravo, empoleirada, qual corvo, na cabeça da Maria Judite de Carvalho, por sua vez abraçada à cabeça da estátua de São Vicente, crocita — a minha alma é de peão. Sou quase sempre por eles, por os que como eu (às vezes também ando de táxi) calcorreiam as ruas mais ou menos esburacadas desta cidade que já escolheu local pouco liso para se instalar. (…) sou pelo peão.

Mas há peões e peões, e às vezes até compreendo os motoristas em fúria. É que há alguns que atravessam as ruas serenamente, olhando em frente, sem um sobressalto, como se vivessem no tempo dos car- ros (raros) puxados por cavalos (…) — nesse instante, o cavalo solta-se da tipóia, volvida táxi, sai em prantos da viatura a tal Estefânia que, repreendida pela Irene Lisboa, larga mão do pequeno Saramago que vai distraído com o mais recente fascículo de Maria, a Fada dos Bosques. São imediatamente abalroados pelo bando de faias e rufias mai-la fadistagem em peso da Mouraria que marcha atrás da Cesária, da Severa e da tal Macheta a desancar no Vimioso. Uma tourada. A Irene pega no Saramago ao colo, avista o José Gomes Ferreira com o José Rodrigues Miguéis à conversa no miradouro e corre até eles, porém, com dificuldade, pois pelo caminho esbarra com o Aquilino, o Bemposta, o Patarroxa e o grupo do Golpe do Elevador da Biblioteca aos gritos Viva a Revolução, Viva!. Embrulham-se com a D. Maria Pia ainda vestida em traje de dominó, corteja- da pelas damas de D. João V e um séquito de peixeiras, varinas e camareiras, a rapariguinha das violetas, a ceguinha do tabaco apoiada pelo Custódio e pela malta da Voz do Operário, o Zé Má- rio de cigarrilha, a Natália com a sua boquilha e tudo em corrente livre em direcção ao rio. Aglo- meram-se ali, gente que nunca mais acaba nem se sabe de onde vem — parece que nascem de- baixo das pedras, diz o Elias, a ver se avista o Marceneiro entre a multidão, eles vêm do chão… A Maria Cotia bamboleia as águas, com um cântaro à cabeça, o Bocage achega-se a ela mas ela é que não se deixa ficar, tira daqui as manápulas, que esta preta não é para ti. D. Sancho I lambuza a Ribeirinha e levanta-lhe as saias, o Gabriel, o Santiago e os meninos da Escola do Paraíso ati- ram pedrinhas aos amantes, incitados pelo Menino Jesus verdadeiro que, à cavaleira de Alberto Caeiro ri a bandeiras despregadas. Juntam-se à molhada as gaitas dos vaqueiros, dos porqueiros e dos zagais de Mestre Gil, com os seus discípulos de todos os séculos glosando décimas ao desafio, fazendo por esta cidade o que nunca ninguém fará. Chegam os poetas. Os da Rua da Saudade vão distribuindo os figos do senhor Armando da fábrica de brinquedos e é ponto assen- te que toda aquela gente veio para ficar. O Ary começa: Soneto escrito na morte de todos os mili- tantes de esquerda assassinados pela PIDE — Vararam-te no corpo e não na força … Vêm subin- do a ladeira, atrás do eléctrico, em procissão, centenas de romanos de chinela e roupão acaba- dos de sair das Termas dos Cássios. Cláudia Quinta traz na mão a deusa Cibele, magna mater, coloca-a no centro da praça e o cortejo de mulheres de vida difícil da Irmandade de Maria Mada- lena inicia os cânticos num longo murmúrio que faz a terra estremecer. Irrompem, em chamas, Ofiúsa, as Tágides e as mourinhas encantadas em torno de uma pedra negra onde um poeta de rua se prepara para cantar. Do eléctrico desce então António Gedeão e diz: Havia no meu tempo um rio chamado Tejo que se estendia ao Sol na linha do horizonte. Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia exactamente um espelho porque, do que sabia, só um espelho com isso se parecia. 

A multidão silencia, de olhos postos no rio. O espectáculo vai começar. 
Fermoso Tejo meu, quão diferente 
te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,

Clar
o te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;

A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!
 

De uma das sombras de Fernando Pessoa, maestro invisível desta breve encenação, surge Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros da Rua dos Douradores, que inicia a narração do auto. 

Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de pais longínquo. A música tornava familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma. A canção dizia, pelas palavras veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem.
Oh, quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!
 

Mas lá virá a fresca Primavera: 
Tu tornarás a ser quem eras dantes,

Eu não sei se serei quem dantes era.

O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A canção era de toda a gente, (…) Era um caso de rua, e todos reparámos que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou parado um tempo por detrás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou. Ninguém disse nada. Então o polícia interveio.

E interveio mesmo: um carro-patrulha da PSP com sistema de alta voz a fazer cumprir as ordens decretadas pelo estado de emergência. Cambada de irresponsáveis, ponha a máscara, siga por esta linha, saia de cima dessa pedra, senhora, não toque na vedação se faz favor, ah, mas é que nós já estamos mortos, e nós somos personagens literárias, olhe, desculpe, senhor agente, isso também se aplica a mim?, é que eu sou uma figura mítica, não há excepções para ninguém, mas está tudo doido?, a senhora não vê televisão?, o R está altíssimo, psst, menino, distanciamento social, etiqueta respiratória, recolher obrigatório, tudo daqui para fora, andor daqui já!  
E lá foram dispersando  todos pelas portas visíveis e invisíveis dos seus tempos. Num repente, o Largo ficou deserto.

Foi então que ela chegou.
A velha Ana, Ana de Alfama. Vinha, como de costume, do Casão Militar, ao Campo de Santa Cla- ra, onde tinha ido receber os panos para os fardamentos. 90 anos de mulher e lá vai ela, sem pa- rança. Se lhe tiram a costura, morre. Pisa a calçada com firmeza. Chegando ao miradouro, não se detém. Para quê? É dela, o rio. O casario, a muralha, a pedra. Vê Lisboa sempre, olhando para dentro. Onde é que a senhora vai? Eu moro aqui, senhor guarda. Aqui, onde? Rua Norberto de Araújo, aqui a meio das escadinhas. Vive sozinha? Nasci aqui, senhor. Não se importa, saía-me da frente, vou carregada, já vê, e tenho muito que fazer. Faça favor, veja lá, não caia. Quem? Eu? Isso é para quem anda lá nas alturas. Eu fico aqui ao rés do chão. 

Entrar em casa, pousar o fardo. Oração a Santa Luzia para aguentar o serão à candeia, uma velinha a Santo António e a vida segue. É Lisboa, segreda Miguéis, uma realidade em si, e será preciso tê-la conhecido e vivido nela para bem a compreender e amar.

Santa Luzia de Alfama
Santa da minha afeição
Ó padroeira dos cegos
Dai luz ao meu coração

O teu corpo de menina
Tão perto e já tão distante

Lembra-me as ondas do mar
A fugir a cada instante

Os teus cabelos são algas
São algas com sal do mar
Ai minha Nossa Senhora
Quem os pudera beijar

ANA SOFIA PAIVA, “ANA DE ALFAMA”, INÉDITO (2021)