Maria Cotia, Beco da Lage

Chamo-me Maria Cotia, a minha mãe era escrava da viúva Sande, dona de uma hospedaria lá para as bandas da Sé ...

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(…) Aos 5 dias do mês de dezembro de 1617
Chamo-me Maria Cotia, a minha mãe era escrava da viúva Sande, dona de uma hospedaria lá para as bandas da Sé. O meu pai, talvez saiba o Demo quem é, pois foram vários aqueles que agarraram minha mãe e a deixaram a sangrar, numa noite quando ia a S. Nicolau levar um bilhetinho a um certo padre, pois que a viúva Sande não tinha ainda fechado a porta para a vida.
Muito cedo vendeu-me a dona de minha mãe, apesar das ordenações d’el rei o proibir, a uma boa alma, Henrique de Mendonça, o pai do meu actual senhor e que me trouxe forra, Deus tenha a sua alma em descanso. (…)

Aos 10 dias do mês de março de 1617

Chamo-me Mariana, criada que sou de D. Nuno de Mendonça e tenho de idade quinze anos, pouco mais ou menos.
Minha mãe era regateira de bacalhau e peixe seco, com banca posta na Porta da Alfofa, moradora em casas defronte ao Mosteiro de Santo Elói e chamava-se Francisca. Meu pai não o conheci, mas contou-me minha mãe que se chamava Diego Galego e que trabalhava como palanqueiro e dormia no abarracamento da Cruz dos Quatro Caminhos. Da estória dos dois, não conheço eu, nem a metade. Só sei que a minha mãe se embeiçou pela forma de falar do Galego. Da forma de falar do Galego se passou à forma de abraçar e… nasci eu, em 1602, que o dia e o mês nunca minha mãe me disse. E meu pai, quando tal se deu, ele que tanto gostava de passarinhar pela Porta da Alfofa, vindo lá dos altos da Graça, mal soube do sucesso, tomou o caminho dos Olivais, dizem uns, ou de Odivelas, dizem outros, e por cá nunca mais apareceu.
Valeu a minha mãe a amizade que tinha com Maria Cotia, mulata, criada na Casa da Avé Maria dos Condes de Figueira, para onde eu fui trabalhar, quando tinha cinco anos, pouco mais ou menos…
Dizem que cresci depressa demais… Ainda não tinha 11 anos e já era mulher. Dizem que foi mau sinal, sinal que o Diabo me tinha escolhido — mas como, se eu nunca senti o Mal no coração?
Só sei que os homens sempre me olharam com olhos que a mulata Cotia dizia serem de cão para cadela. A Cotia sabia muito da vida. Filha de escrava preta sabia as coisas dos dois lados. E sempre me protegeu, das outras criadas que queriam pôr-me a fazer o trabalho delas e dos homens que me olhavam com olhos de cão para cadela!
Mas cresci bem depressa! Se foi depressa de mais, só o tinhoso o sabe — cedo me cresceram os peitos e arredondaram as coxas, cedo passei a altura da mulata Cotia e de minha mãe, que só me via de quando em quando e que, nessa altura, enchia o ar com voz de admiração — “Vê, Cotia, como ela está bonita, vê como está mulher!” Mal sabia a minha mãe Francisca que este corpo iria ser a minha maldição. Só a Cotia adivinhava, só ela sabia!

JOÃO CASTELA CRAVO, “MARIANA E MARCELINA”, LUGARES E PALAVRAS DE LISBOA (2015)
CANTOS IX E X Recolhidos por Aires da Mata Machado Filho em Minas Gerais, Brasil | Intépretes: Geraldo Filme, Tia Doca e Clementina de Jesus, “O Canto dos Escravos” (1984)