… da janela
do meu quarto / vejo saltar
a sardinha!
Então é que são mesmo peixinhos
de prata que pulam ao luar. A voz fresca e sentida derrama-se pela vizinhança adormecida, mexe-lhe com alguma coisa lá dentro,
afoga-o de sedução.
Larga as grades e estende os braços… É amor, é de amor que ele sofre! A tia aperta-o ao peito e ri-se, beija-o com ternura: “Tolo, meu tolinho!” — O seio dela é macio, o seu cabelo negro cheira bem, e ele fecha os olhos, gosta de adormecer assim no zunzum das conversas,
dos risos. Sente-se
embalado e parte à desfilada
pelo céu de prata.
Mas
há muito mais, ali, do que o luar: os cais, os guindastes, as sereias e apitos, o arfar das loco- motivas e o ranger das correntes
e roldanas, o martelar das forjas e dos caldeireiros. Chegam até à mansarda
distante os cheiros náuticos. Risos de fumo bajulam o azul trespassado de sol. (…)
(…) É logo abaixo
do Castelo, as traseiras encostam
a São Tiago e aos Loyos (…)
De noite, com a brisa, e sobretudo quando há névoa, o cheiro da maresia é mais forte, e o menino fica na cama de grades, com os olhos muito abertos, a escutar aqueles mugidos e roncos graves, a indecifrável conversa dos paquetes, (…)
Não
se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. (…)
Mas deixemos
tudo isso e desçamos agora
à rua, sim? (…)
Por
extraordinário que pareça, o Paraíso existe e está mesmo ao nosso alcance: ao cimo da Calçada, quase
no encontro de três ruas, mas recolhido
e ausente. Desde a Sé lá em baixo, o labirinto das ruas, a meia-laranja, a íngreme ladeira com os gradeamentos polidos como bronze, os telhados sobrepostos, a capela sempre fechada — tudo isto forma um presépio
erguido sobre muros e socalcos de jardins donde se debruçam
velhas pimenteiras, trepadeiras e flores mal cuidadas,
e se enxergam painéis
de antigos azulejos.
(…)
É Lisboa, uma realidade
em si, e será preciso tê-la conhecido e vivido nela para bem a compreender
e amar. (…)
Para
ir ao Colégio desce-se a São Mamede:
seria mais simples
ir por cima, à Rua dos Milagres, mas o pai, ao sair de manhã para a sua vida, acompanha
os filhos até à meia-laranja, onde os beija e se demora um pouco a vê-los subir a curva suave da rampa. No alto, à esquerda,
numa casinha oculta entre prédios mais altos, está o Colégio.
(…)
Um
dia, aos dois anos e meio, acompanhou
os irmãos ao Colégio: nunca mais quis ficar sozinho em casa.
(…)
como é bom correr, voar rua abaixo, com a vertigem
do precipício, na curva tão bem lançada da rampa. (…) O Santiago
corta a direito por ali abaixo, saltando as grades sem medo nenhum, para chegar mais depressa
à meia-laranja, (…) O Gabriel
segue-o com os olhos: como ele é valente, quem me dera ir com ele!
(…) O irmão desapareceu — ouvem-se gritos — irão encontrar-se lá em baixo a São Mamede.
(…)
JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS,
“A ESCOLA DO PARAÍSO” (1960)
NOITE SERENA (A BARQUINHA)
Camilo C. Branco / J. Sanches
da Gama, José Dória (1850)
| Intérprete: Marco Oliveira
SERENATAÀ LUA (SENTINELA
DO CÉU AVANÇADA) Música: Popular
| Intérprete: Alice Ávila, Portuguese American
Folk Music, Califórnia (1939)