Saudade, rua da Saudade

.Assim fez. Atravessou a rua e entrou no prédio. Tinha imaginado que ao chegar lá acima, bateria suavemente com os nós dos dedos numa das almofadas da madeira da porta e esperaria pela resposta...

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(…) o inesperado nascimento lá nas alturas do quarto andar direito, número 7 da rua do Arco do Limoeiro — hoje rua Augusto Rosa — foi festejado com muita alegria (…)
Neste prédio onde nasceu está hoje colocada uma placa que recorda o seu nascimento. Diz assim: Neste prédio nasceu a 24 de Novembro de 1906 Rómulo Vasco da Gama Carvalho (professor e pedagogo, divulgador de ciência, investigador da História. Escreveu poesia, assinando António Gedeão).

Algumas vezes, já depois de muitos e muitos anos passados, Rómulo quis visitar essa casa com tão boas recordações da infância mais remota. Ainda dois ou três anos antes da sua morte subiu e desceu a rua, pelo passeio contrário. Possivelmente, no pensamento adivinhava-se-lhe uma qualquer proximidade de despedida, de um adeus definitivo. Quis por aí passear e desejou intensamente penetrar na escuridão do prédio, atravessar a porta da rua, subir todos os lanços de degraus até ao primeiro, ao segundo, ao terceiro andar. Aqui se deter por pouco tempo neste patamar, olhar para cima, para o quarto e último andar. Esse mesmo onde nasceu.
Assim fez. Atravessou a rua e entrou no prédio. Tinha imaginado que ao chegar lá acima, bateria suavemente com os nós dos dedos numa das almofadas da madeira da porta e esperaria pela resposta. O que iria dizer? “Boa tarde. Desculpe-me! É que nasci nesta casa, morei aqui até aos dez anos! Quis sentir, saborear, lembrar-me de uma outra vida que foi a minha… Dá-me licença que entre? Não me demorarei nada…”
(…) Não passou do terceiro andar. Não teve a coragem necessária. Nem mesmo quando ouviu bater uma porta, mais acima, e percebeu alguém que descia até ele, e ele ali parado no tempo e no espaço. Uma velha figura inquieta vinda das profundezas, regressada dos contornos de todas as sombras que são produzidas velozmente nos arcanos mais primitivos de cada um, uma velha figura terna e sentimental parada num certo patamar de um terceiro andar, afagando o corrimão com a mão enervada a correr para cima e para baixo, vou, não vou, subo, não subo.
Não subiu. Nem apareceu ninguém. Nada se passou. De forma que deu por ele a descer a rua, calmamente, em direcção ao eléctrico que, esse sim, ainda continuava a avançar pelas ruas de Lisboa como antigamente quando ele era pequenino.

A Rua da Saudade é um relicário. No número 23 viveu e morreu José Carlos Ary dos Santos, no mesmo prédio onde também viveu e morreu Alexandre O’Neill. Lá ao fundo, no número 13, nasceu José Rodrigues Miguéis. Até Almeida Garrett aqui morou, no número 9-A. Tudo isto do lado direito de quem entra pelos Lóios, com o Tejo imenso a espreitar lá em baixo. Será preciso chegar mesmo ao fim da rua para compreender porque é que ela se chama “da saudade”. Pouca gente sabe, talvez ninguém, mas do outro lado da rua, no número 2, 2º andar, existiu uma fábrica de brinquedos de madeira. Era a sociedade Chagas & Irmão Lda. Havia uma figueira enorme no pátio do rés-do-chão e as pernadas chegavam até à janela. O meu pai trazia sempre figos para a menina dos seus olhos, que era eu. Não lhes recordo o cheiro, nem o sabor, mas sou capaz de reconhecer qualquer cavalo, anjo, boneco ou passarinho que tenha saído daquela fábrica e passado pelas mãos do meu pai. Era ele que os pintava e ensinou-me o segredo para os identificar. A me- nina dos olhos. O segredo está na menina dos olhos. Podem fazer o que quiserem daquele prédio (já o estragaram muito): para mim continuará a ser a fábrica da minha saudade. Quando lá voltar, demoro-me naquela curva da rua que tem um pequeno pátio com uma Bela Sombra muito antiga a ver os eléctricos subir e descer, descer e subir. O meu pai pode entrar ou sair por aquela porta a qualquer momento com um saco de figos na mão e eu quero vê-lo a atravessar a rua para vir ao meu encontro. 
Ana Maria Fialho, filha de Armando Fialho, pintor de arte aplicada, nascido no antigo Páteo Bagatella a 30 de Maio de 1928.

Na Rua da Saudade
Aquela rua
Junto ao largo da infância
Onde a vida continua

A marcar uma distância
Quem nela mora

Vê o espelho de outra idade
Quando a tarde se demora
Nos olhos de uma saudade
Na Rua da Saudade

Não há cravos nas janelas
As portas estão fechadas
Não há luz por dentro delas
Poeira do passado

Silêncio de oração
Molduras desmaiadas
Retratos de ilusão

Na Rua da Saudade
Algo fica de quem parte
Um beijo, uma promessa
De amanhã reencontrar-te

Quem dera ver-te ainda
À espera de voltar

À Rua da Saudade
Que foi sempre o teu lugar

Naquela rua

Ao Largo de São Martinho
Vi brinquedos de madeira
Um cavalo, um passarinho

Calçada escura
Que Santo António abençoa
Ao relento da ternura
Coração de outra Lisboa

Na Rua da Saudade
Ninguém passa sem chorar
O tempo de mansinho
Adormece a ver passar 
Tão belas são as sombras
Nos pátios ao luar
Saudades e encantos

De quem nos quer lembrar
Na Rua da Saudade

Algo fica de quem parte
Um beijo, uma promessa
De amanhã reencontrar-te
Quem dera ver-te ainda

À espera de voltar
À Rua da Saudade

Que foi sempre o teu lugar

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