Algumas vezes, já depois de muitos e muitos anos passados,
Rómulo quis visitar essa casa com tão boas recordações da infância mais remota. Ainda dois ou três anos antes da sua morte subiu e desceu a rua, pelo passeio contrário. Possivelmente, no pensamento adivinhava-se-lhe uma qualquer
proximidade de despedida, de um adeus definitivo. Quis por aí passear e desejou intensamente penetrar na escuridão
do prédio, atravessar a porta da rua, subir todos os lanços de degraus até ao primeiro, ao segundo, ao terceiro andar. Aqui se deter por pouco tempo neste patamar, olhar para cima, para o quarto e último andar. Esse mesmo
onde nasceu.
Assim fez. Atravessou a rua e entrou no prédio. Tinha imaginado
que ao chegar lá acima, bateria suavemente com os nós dos dedos numa das almofadas da madeira da porta e esperaria pela resposta.
O que iria dizer? “Boa tarde. Desculpe-me! É que nasci nesta casa, morei aqui até aos dez anos! Quis sentir, saborear, lembrar-me de uma outra vida que foi a minha… Dá-me licença
que entre? Não me demorarei nada…”
(…)
Não passou
do terceiro andar. Não teve a coragem necessária. Nem mesmo quando
ouviu bater uma porta, mais acima, e percebeu alguém que descia até ele, e ele ali parado no tempo e no espaço. Uma velha figura inquieta vinda das profundezas, regressada dos contornos de todas as sombras que são produzidas velozmente
nos arcanos mais primitivos de cada um, uma velha figura terna e sentimental parada num certo patamar de um terceiro andar, afagando o corrimão com a mão enervada a correr para cima e para baixo, vou, não vou, subo, não subo.
Não subiu.
Nem apareceu ninguém. Nada se passou.
De forma que deu por ele a descer a rua, calmamente, em direcção
ao eléctrico que, esse sim, ainda continuava a avançar pelas ruas de Lisboa como antigamente quando ele era pequenino.
A Rua da Saudade é um relicário. No número 23 viveu e morreu José Carlos Ary dos Santos,
no mesmo prédio onde também viveu e morreu Alexandre O’Neill. Lá ao fundo, no número 13, nasceu José Rodrigues Miguéis.
Até Almeida Garrett aqui morou,
no número 9-A. Tudo isto do lado direito de quem entra pelos Lóios, com o Tejo imenso a espreitar lá em baixo. Será preciso chegar mesmo ao fim da rua para compreender porque é que ela se chama “da saudade”. Pouca gente sabe, talvez ninguém,
mas do outro lado da rua, no número
2, 2º andar, existiu
uma fábrica de brinquedos de madeira. Era a sociedade Chagas & Irmão Lda. Havia uma figueira enorme no pátio do rés-do-chão e as pernadas
chegavam até à janela. O meu pai trazia sempre figos para a menina dos seus olhos, que era eu. Não lhes recordo o cheiro,
nem o sabor, mas sou capaz de reconhecer qualquer
cavalo, anjo, boneco ou passarinho que tenha saído daquela fábrica e passado pelas mãos do meu pai. Era ele que os pintava e ensinou-me o segredo para os identificar. A me- nina dos olhos. O segredo está na menina dos olhos. Podem fazer o que quiserem
daquele prédio (já o estragaram muito): para mim continuará a ser a fábrica da minha saudade.
Quando lá voltar, demoro-me naquela curva da rua que tem um pequeno pátio com uma Bela Sombra muito antiga a ver os eléctricos
subir e descer, descer e subir. O meu pai pode entrar ou sair por aquela porta a qualquer momento com um saco de figos na mão e eu quero vê-lo a atravessar a rua para vir ao meu encontro.
Ana Maria Fialho, filha de Armando Fialho, pintor de arte aplicada,
nascido no antigo Páteo Bagatella
a 30 de Maio de 1928.
CRISTINA CARVALHO,
RÓMULO DE CARVALHO/ANTÓNIO GEDEÃO
- PRÍNCIPE PERFEITO
(2012)
ANA SOFIA PAIVA, “A FÁBRICA DA SAUDADE”, INÉDITO
(2021)
RUA DA SAUDADE
Letra: Ana Sofia Paiva/Marco
Oliveira | Música:
Marco Oliveira, Ruas e Memórias (2021)