Ainda não tinha dado a meia-noite
e esperávamos dum momento para o outro o sinal convencionado: o foguetão de pólvora bombardeira que, lançado do elevador da Biblioteca, devia
atroar os ares e reboar pelas sete colinas,
com suas respectivas chãs, (…) Toda a inquietação do Bemposta era que não varresse até ali o estampido, (…)
—
Quem me garante que se ouve aqui a detonação, quem me garante?
— Garanto eu — exclamou Humberto.
— Ora ouve: se nós estivéssemos na ala do Castelo que olha a nascente, podia
suceder que as ondas sonoras
sofressem interferência. Mas nós estamos
na aba sul a escorregar para o rio. Não se mete de permeio nenhuma elevação. Antes, pelo contrário, esta Rua do Milagre de Santo António é uma espécie
de tubo de órgão em relação à caixa de ressonância que são os bairros pombalinos. Além disso, o ponto em que estamos
é uma das cotas mais altas de Lisboa e deve sobrepujar de muito a do elevador. Portanto,
amigo Bemposta, cheguem eles a mecha ao foguetão, que os nossos ouvidos não falham.
(…) foi passando o tempo. (…)
— Estamos aqui
a ganhar a morte. (…) Pois que estamos na Rua das
Damas do paço da Alcáçova, sou de opinião que se invoque
a alma errante da Ribeirinha. Ela que nos aconselhe (…)
Subitamente,
à boca do quartel produziu-se um bulício que nos deixou sem pinga de
sangue.
(…) era o render da sentinela. (…) A certa altura figurou-se-nos
ouvir para a Rua de Santiago uma assuada,
que logo todos interpretámos como sendo o grupo capitaneado pelo Paulo
Ramos que levantava
com armas e bagagens. Bemposta despegava já, no propósito de chamá-los à
ordem, mas nós é que não estivemos
pelos ajustes, e atrás dele transpusemos o arco da Rua das Damas, depois
Largo do Contador-Mor abaixo inflectimos para a Rua de Santiago.
Encontrámos o grupo (…) verdadeiramente em rebuliço
(…) A revolução gorara no
ovo. Polícia e Guarda estavam
senhoras da situação.
Tinham sido presos os chefes. (…) salve-se quem puder. (…)
— Isto só se salva por um atentado.
A revolução das “massas”
rezemos-lhe por alma! (…) a sentinela
rompeu aos tiros. (…)
— Toca a dispersar! (…) Em poucos minutos temos a Guarda na rua, alarmada
pelos tiros da senti- nela, se é que não receberam comunicação do que se passa pela cidade. Vá, toca a dispersar.
Esta é a hora dos covardes.
— Viva a Revolução! (…) — Viva! (…)
A resposta
foi a sentinela alvejar-nos com tiros sucessivos. Os nossos ripostaram (…) Esgueirámo-nos Rua da Saudade a baixo, já um vasto rumor se desencadeava à nossa espalda,
(…)
Tomámos pela Rua de S. Mamede. (…)
— É chegada a hora terrível dos covardes. Quem manda são eles, e ninguém é mais expedito,
meticuloso,
fura-paredes, e até mesmo mais perspicaz. Mas, acima de tudo, ninguém
é mais cruel. (…)
— (…) Vocês para onde vão? (…) Moro aqui perto nos Fanqueiros. Tu, Libório, vens comigo. (…)
Separámo-nos cada um para seu lado na Rua da Madalena.
A Ribeirinha
No mundo non me sei parelha,
Mentre me for como me vai,
Cá já moiro por vós, e – ai!
Mia senhor branca e vermelha.
Queredes que vos retraya
Quando vos eu vi em saya!
Mau dia me levantei,
Que vos enton non vi fea!
E, mia senhor,
desdaqueldi, ai!
Me foi a mi mui
mal,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
Dhaver eu por vós guarvaia,
Pois eu, mia senhor,
dalfaia
Nunca de vós houve
nem hei
Valia dua correa.
REFLEXOS MOVIMENTO CIRCULAR
Música: Bernardo Sassetti | Intéprete: Bernardo Sassetti Trio; “Motion” 2010
AQUILINO RIBEIRO, LÁPIDES
PARTIDAS, 1945
Sobre o Golpe do Elevador da Biblioteca, 28 de Janeiro de 1908
CANTIGA DA RIBEIRINHA (CANTIGA
DE GARVAIA)
Paio Soares de Taveirós
(1189-1198?) | Cancioneiro da Ajuda (séc. XIII) | Música:
Marco Oliveira