Ribeirinha, largo dos Lóios

.... recolhidos no vão da porta, passaríamos por vizinhos que matam um pedaço da noite ao cavaco ou namorados no derrete ...

Ouvir Podcast
voltar a procurar

Postou os seus homens nas esquinas circunjacentes, (…) que há ao tornejar para a Rua da Sauda- de, nas sombras que descem (…) do Palácio de Santo Elói, e com Humberto Patarroxa, dois rachadores do grupo D e comigo, tomou posição na Rua das Damas, à boca mesmo do quartel. A sentinela talvez nos sentisse, se é que não nos tinha avistado, mas, recolhidos no vão da porta, passaríamos por vizinhos que matam um pedaço da noite ao cavaco ou namorados no derrete.                                                                      (…)

Ainda não tinha dado a meia-noite e esperávamos dum momento para o outro o sinal convencionado: o foguetão de pólvora bombardeira que, lançado do elevador da Biblioteca, devia atroar os ares e reboar pelas sete colinas, com suas respectivas chãs, (…) Toda a inquietação do Bemposta era que não varresse até ali o estampido, (…)
—  Quem me garante que se ouve aqui a detonação, quem me garante?
—  Garanto eu — exclamou Humberto. — Ora ouve: se nós estivéssemos na ala do Castelo que olha a nascente, podia suceder que as ondas sonoras sofressem interferência. Mas nós estamos na aba sul a escorregar para o rio. Não se mete de permeio nenhuma elevação. Antes, pelo contrário, esta Rua do Milagre de Santo António é uma espécie de tubo de órgão em relação à caixa de ressonância que são os bairros pombalinos. Além disso, o ponto em que estamos é uma das cotas mais altas de Lisboa e deve sobrepujar de muito a do elevador. Portanto, amigo Bemposta, cheguem eles a mecha ao foguetão, que os nossos ouvidos não falham.
(…) foi passando o tempo. (…)
—  Estamos aqui a ganhar a morte. (…) Pois que estamos na Rua das Damas do paço da Alcáçova, sou de opinião que se invoque a alma errante da Ribeirinha. Ela que nos aconselhe (…)
 

Subitamente, à boca do quartel produziu-se um bulício que nos deixou sem pinga de sangue. (…) era o render da sentinela. (…) A certa altura figurou-se-nos ouvir para a Rua de Santiago uma assuada, que logo todos interpretámos como sendo o grupo capitaneado pelo Paulo Ramos que levantava com armas e bagagens. Bemposta despegava já, no propósito de chamá-los à ordem, mas nós é que não estivemos pelos ajustes, e atrás dele transpusemos o arco da Rua das Damas, depois Largo do Contador-Mor abaixo inflectimos para a Rua de Santi​​ago. Encontrámos o grupo (…) verdadeiramente em rebuliço (…) A revolução gorara no ovo. Polícia e Guarda estavam senhoras da situação. Tinham sido presos os chefes. (…) salve-se quem puder. (…)
—  Isto só se salva por um atentado. A revolução das “massas” rezemos-lhe por alma! (…) a sentinela rompeu aos tiros. (…)
—  Toca a dispersar! (…) Em poucos minutos temos a Guarda na rua, alarmada pelos tiros da senti- nela, se é que não receberam comunicação do que se passa pela cidade. Vá, toca a dispersar. Esta é a hora dos covardes.
—  Viva a Revolução! (…) — Viva! (…)
A resposta foi a sentinela alvejar-nos com tiros sucessivos. Os nossos ripostaram (…) Esgueirámo-nos Rua da Saudade a baixo, já um vasto rumor se desencadeava à nossa espalda, (…)
Tomámos pela Rua de S. Mamede. (…)
—  É chegada a hora terrível dos covardes. Quem manda são eles, e ninguém é mais expedito, meticuloso, fura-paredes, e até mesmo mais perspicaz. Mas, acima de tudo, ninguém é mais cruel.  (…) 
— (…) Vocês para onde vão? (…) Moro aqui perto nos Fanqueiros. Tu, Libório, vens comigo. (…)
Separámo-nos cada um para seu lado na Rua da Madalena.

A Ribeirinha
 
No mundo non me sei parelha,
Mentre me for como me vai,
Cá já moiro por vós, e – ai!

Mia senhor branca e vermelha.
Queredes que vos retraya
Quando vos eu vi em saya!

Mau dia me levantei,

Que vos enton non vi fea!

E, mia senhor, desdaqueldi, ai!
Me foi a mi mui mal,

E vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
Dhaver eu por vós guarvaia,
Pois eu, mia senhor, dalfaia
Nunca de vós houve nem hei
Valia dua correa.

REFLEXOS MOVIMENTO CIRCULAR Música: Bernardo Sassetti | Intéprete: Bernardo Sassetti Trio; “Motion” 2010
AQUILINO RIBEIRO, LÁPIDES PARTIDAS, 1945 Sobre o Golpe do Elevador da Biblioteca, 28 de Janeiro de 1908
CANTIGA DA RIBEIRINHA (CANTIGA DE GARVAIA) Paio Soares de Taveirós (1189-1198?) | Cancioneiro da Ajuda (séc. XIII) | Música: Marco Oliveira