A Estefânia ainda era nova. Era uma mulher seca, ríspida, autoritária e ambiciosa. Foi tudo isto, coitada,
dotada de todo este vigor para nada, afinal. (…)
Era magra como uma cana e de modo austero,
preocupada, desagradável.
A Estefânia
(que embirrante nome!) (…) veio a morrer tuberculosa aos trinta anos. A sua morte de- via ter ocorrido pelos meus onze, mas lembro-me perfeitamente dela. Era uma mulher alta, pálida, com uma cara de cutelo, estreita e comprida, um pouco lançada para a frente, e um cabelo muito escuro, pesa- do e liso. Usava um carrapito ao alto, como era a moda daquele
tempo, que lhe enchia a cabeça. Devia ser um cabelo
bonito, mas a mim parecia-me feio porque era dela…
(…)
A Estefânia passava
o melhor do seu tempo connosco. Costurava para nós e já vivia também em Lisboa. (…) Foi mesmo por seu intermédio
que eu vim a conhecer certa franganagem alegre e de pé leve de Lisboa, gente que a excitava e tornava comunicativa: umas comadres
e amigas a casa de quem ela nos levava de vez em quando. Famílias
de cauteleiros e de fabricantes de bandarilhas, que moravam para a Calçada dos Cavaleiros e para as Escolas Gerais,
numa espécie de becos. A Estefânia também já tinha morado na estreitíssima Rua do Salvador. Quando ainda por lá passo, é verdade que muito raramente
e de largo, não deixo de pensar nela, de me figurar que alguma coisa sua por ali ficou. Cada um de nós faz a história das pessoas e dos lugares
a seu modo!
Creio que nos mês de Fevereiro de 1927 ainda estaríamos a viver na Mouraria (…) devemos ter deixado a casa da Rua dos Cavaleiros um pouco antes de eu começar os estudos. (…) As traseiras
da casa em que vivíamos
davam para a Rua da Guia, onde ia desembocar
a célebre Rua do Capelão, presença fatal, inevitável, em letras de fado e recordações da Maria Severa e do Marquês de Marialva,
acompanhadas à guitarra e a copos de aguardente. Tinham vista para o Castelo,
(…) Morávamos no último andar (…) num quarto de serventia
de cozinha, como então os anúncios informavam. (…) Lembro-me
de dormir no chão, no quarto
dos meus pais (único, aliás)
Olhando do nosso andar, na parte das traseiras, o prédio parecia-me altíssimo, e mais tarde, mesmo sendo eu já adulto, muitas vezes sonhei que caía lá de cima, embora este verbo cair não deva ser entendido na sua plena literalidade, isto é, no sentido de queda desamparada, pois o que realmente
sucedia era que eu me deixava descer, roçando devagarinho pelas varandas dos andares
de baixo, pela roupa estendida, pelos vasos de
flores, até pousar suavemente nas pedras da Rua da Guia,
intacto.
JÚLIO
DANTAS, A SEVERA (1901)
IRENE
LISBOA, COMEÇA UMA VIDA (1940)
JOSÉ
SARAMAGO, AS PEQUENAS
MEMÓRIAS (2006)
TIA MACHETA (MAUS AGOIROS)
Poema: João Linhares
Barbosa | Música:
Manuel Soares | Intérprete: Berta Cardoso “Tia Macheta” (1961)