Encruzilhada rua do Salvador

.... roçando devagarinho pelas varandas dos andares de baixo, pela roupa estendida, pelos vasos de flores, até pousar suavemente nas pedras ...

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E a pobre da Cesária lá ia subindo essa interminável Rua da Amendoeira, (…) Chegada, enfim, ao tôpo da viela, galgou a Calçada de Santo André; passado o arco, cortou à direita, meteu pela rua de Santa Marinha; quando atravessava o Largo de S. Vicente, de caminho para o terreiro, batiam as oito em Santa Maria Maior. Estugou o passo. (…) Alguns passos mais, e a cigana desembocava no terreiro de Santa Clara. A casa da Macheta era ali perto. (…) 

A Estefânia ainda era nova. Era uma mulher seca, ríspida, autoritária e ambiciosa. Foi tudo isto, coitada, dotada de todo este vigor para nada, afinal. (…)
Era magra como uma cana e de modo austero, preocupada, desagradável.
A Estefânia (que embirrante nome!) (…) veio a morrer tuberculosa aos trinta anos. A sua morte de- via ter ocorrido pelos meus onze, mas lembro-me perfeitamente dela. Era uma mulher alta, pálida, com uma cara de cutelo, estreita e comprida, um pouco lançada para a frente, e um cabelo muito escuro, pesa- do e liso. Usava um carrapito ao alto, como era a moda daquele tempo, que lhe enchia a cabeça. Devia ser um cabelo bonito, mas a mim parecia-me feio porque era dela…
(…)
A Estefânia passava o melhor do seu tempo connosco. Costurava para nós e já vivia também em Lisboa. (…) Foi mesmo por seu intermédio que eu vim a conhecer certa franganagem alegre e de pé leve de Lisboa, gente que a excitava e tornava comunicativa: umas comadres e amigas a casa de quem ela nos levava de vez em quando. Famílias de cauteleiros e de fabricantes de bandarilhas, que moravam para a Calçada dos Cavaleiros e para as Escolas Gerais, numa espécie de becos. A Estefânia também já tinha morado na estreitíssima Rua do Salvador. Quando ainda por lá passo, é verdade que muito raramente e de largo, não deixo de pensar nela, de me figurar que alguma coisa sua por ali ficou. Cada um de nós faz a história das pessoas e dos lugares a seu modo!
 

Creio que nos mês de Fevereiro de 1927 ainda estaríamos a viver na Mouraria (…) devemos ter deixado a casa da Rua dos Cavaleiros um pouco antes de eu começar os estudos. (…) As traseiras da casa em que vivíamos davam para a Rua da Guia, onde ia desembocar a célebre Rua do Capelão, presença fatal, inevitável, em letras de fado e recordações da Maria Severa e do Marquês de Marialva, acompanhadas à guitarra e a copos de aguardente. Tinham vista para o Castelo, (…) Morávamos no último andar (…) num quarto de serventia de cozinha, como então os anúncios informavam. (…) Lembro-me de dormir no chão, no quarto dos meus pais (único, aliás)
Olhando do nosso andar, na parte das traseiras, o prédio parecia-me altíssimo, e mais tarde, mesmo sendo eu já adulto, muitas vezes sonhei que caía lá de cima, embora este verbo cair não deva ser entendido na sua plena literalidade, isto é, no sentido de queda desamparada, pois o que realmente sucedia era que eu me deixava descer, roçando devagarinho pelas varandas dos andares de baixo, pela roupa estendida, pelos vasos de flores, até pousar suavemente nas pedras da Rua da Guia, intacto.

JÚLIO DANTAS, A SEVERA (1901)
IRENE LISBOA, COMEÇA UMA VIDA (1940)
JOSÉ SARAMAGO, AS PEQUENAS MEMÓRIAS (2006)
TIA MACHETA (MAUS AGOIROS) Poema: João Linhares Barbosa | Música: Manuel Soares | Intérprete: Berta Cardoso “Tia Macheta” (1961)