Toupeiras, Beco dos Fróis

.... os jornais, numa molesta e soturna ladainha, perturbam a digestão com o relato febril de uma outra Lisboa ...

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No Beco do Fróis
Viveu gente sem alma

 
Gente indiferente

Gente que morre sem luto
Que não ganha prò charuto
Gente que não pode ser gente
 

A Maria camareira
A cigana e a rameira

A rapariga das violetas
As calhandreiras pretas
  
E além naquele buraco
Mora a ceguinha do tabaco

Passam automóveis de várias cores, eléctricos animados de velocidades irregulares (…) vidas em atropêlos, novos no patamar da vida, velhos no declive da existência…
Mas ela não vê ninguém!
(…) Dir-se-ia que o seu mundo é a imensidade das trevas dos seus olhos cerrados para a vida! (…) Sabe-se lá o que ela segreda a si mesmo ali, frente à vida, entre o tabuleirito de cigarros e a fachada lateral do Teatro D. Maria II.
Só ela o sabe! Mais ninguém!
(…)
Aquela pobre mulher, tipo medianeiro entre o farrapo humano e a vida das valas comum, deu-me que pensar!
É que o seu destino é diferente dos outros destinos, embora ambos sem itinerário.
É um destino diferente mas concorrente. Nunca paralelo! Este destino encontrar-se-á com outros da mesma craveira, nos mesmos carris e sempre à hora marcada!
Pobre vendedeira de tabaco que és vendedeira de tabaco na posse de um rótulo, irmão gémeo daqueles que usam os cauteleiros (…) Tu, como eles, não contas para o número dos vivos porque és cega e não tens encanto! O mundo passa por ti e nunca te louva a presença; antes pelo contrário!
Condena-te com o silêncio de desprezo e — porque não? — da esmola que se permitem caia na caixita género bandeja de recolha como nos peditórios dos acordeonistas da rua! Lamento a existência atroz dos teus dias e do fim para que nasceste. Trevas no olhar; compaixão na alma daqueles a quem Deus a deu!

Todos os dias às criaturas opiparadas de prazer, se as há, os jornais, numa molesta e soturna ladainha, perturbam a digestão com o relato febril de uma outra Lisboa (…) Amargura, miséria, lama capaz de afogar uma cidade. (…) um mundo de que não se suspeita, que vive cerca de nós e quasi se não dá por isso, que, se chora, não se lhe vêem as lágrimas, e que se tem fala não se lhe ouve a voz. (…) quando alviçareiramente uma gazeta extravasa em minúcias trágicas um caso como o da varina assassinada, da desgraçada da Mouraria ou outra semelhante, ela, no zenith da digestão, pensa que há muita miséria por esse mundo. Mas também, providencialmente avisada por algum arroto, considera que pensar nisso é tonteria (…). E fuma-lhe um charuto. Que não há nada melhor, valha a verdade. Um charutinho dos bons…
Ora, penso eu agora, que extraordinária obra a fazer com esta Lisboa e com as Lisboas diferentes que dentro dela existem. A Lisboa dos antros, a Lisboa dos envergonhados, a dos míseros, a dos crapulosos, a dos famintos, a dos revoltados. A dos que não têm pão, a dos que não têm honra, a dos que não têm nada. É uma outra cidade, sombria, desconhecida, absoluta e inteiramente inédita, que está por de- baixo desta sem se ver. Depois, inquirir dessas vidas, saber como se vive de profissões que nunca se supôs existirem, de prodígios de energia, de prodígios de resistência, de prodígios de vitalidade. Viver de não se sabe quê, mas viver! Cogitar o mistério dessas vidas toupeiras.
Ah! Ainda há muito a fazer!

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.
 

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.
 

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.

Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.
 

Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.
 

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e
 não nos soa na memória
utra palavra para o medo.
 

(…)

ANA SOFIA PAIVA, “NO BECO DOS FRÓIS”, INÉDITO (2021)
ÁPIO GARCIA, “A CEGUINHA DO TABACO”, JORNAL DE LOUSADA (1952)
ALBINO FORJAZ DE SAMPAYO, LISBOA TRÁGICA (1910)
QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS NATÁLIACORREIA (1957) | MÚSICA DE JOSÉ MÁRIO BRANCO, SER SOLIDÁRIO (1982)