Alcáçova, Pátio de D.Fradique

.... o meu nome é Gil Vicente e sou persona non grata ou ainda não talvez ainda não seja não, não sou nem serei o que acontece é que eu desapareço dos registos, mas não desapareceram tantos outros? ...

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As casas e terrenos de D. Manuel Fradique eram conhecidas, nos meados do século XVI, por hortas de Dom Fradique. E é possível que, à semelhança da Horta do Paço Real, as Hortas de Dom Fradique ti- vessem sobreiros, zambujeiros, alfarrobeiras, medronheiros, pinheiros-mansos e algumas árvores de fruto (oliveiras seguramente).

É provável que a Rua dos Penozinhos (actualmente o troço sul-norte da Rua do Recolhimento, antes, Rua do Jardim), ligasse a actual Rua de Santa Cruz do Castelo às casas de Dom Fradique. Nessa rua viviam Francisca Mendes, mulher rica avaliada em 650 000 réis nos seus fornos e atafonas e, próximo do Adro de Santa Cruz, 2 filhos e 1 neta de Gil Vicente, respectivamente Paula Vicente, em casa própria, Luís Vicente e Maria Tavares.
Melícia Rodrigues, viúva de Gil Vicente, (…) habitava nos Paços Velhos com o guarda braçal, 1 tabelião e mais 9 braçais, 5 deles mulheres (1 parda) e 1 cego.
Mas a mais importante visitação que a Alcáçova recebeu, pode ser contada assim:   Num domingo de Junho de 1502, começou a Rainha D. Maria, segunda mulher de D. Manuel, a sentir que em breve ia ser mãe. Estava no Paço da Alcáçova, erguido no alto da cidade, deitada em magnífico leito de pau-santo, lavrado à maravilha e emoldurado pelas grandes alcatifas e panos de Arras. (…) O ar estava pesado. Uma calma pairava sobre a cidade e o Tejo semelhava uma placa de prata com as caravelas, urcas e naus, imóveis, como fixadas. (…) Às 2 horas da madrugada, segunda-feira, 6 de Junho, nasceu um príncipe nessa câmara da Alcáçova. (…) Dias depois do príncipe D. João nascer, nascia também, na mesma câmara luxuosa do paço da Alcáçova, com o monólogo do Vaqueiro, o Teatro Português.

o meu nome é Gil Vicente
ou talvez não  

situo a minha vida entre dois séculos — XV e XVI não conheci o século XV nem o século XVI

o meu nome é Gil Vicente e sou persona non grata
ou ainda não
talvez ainda não seja
não, não sou nem serei
o que acontece é que eu desapareço dos registos,
mas não desapareceram tantos outros?

o meu nome é Gil Vicente e dirijo-me a passos largos para o paço da Rainha
ou talvez não sejam largos
mas sim tímidos
sou um tímido Gil Vicente que se dirige aos aposentos da rainha levando em mãos um manuscrito
estou confiante
(não estou confiante, tenho medo, tenho sempre medo quando levo o texto para os ensaios no primeiro dia, medo que me digam que não gostam, ou pior, que não digam nada)

chamo-me Gil Vicente e estou cheio de medo
ano da graça de 1502 e tenho medo
que a rainha não goste
que as pessoas não gostem
que nunca mais ninguém goste
que ninguém chegue sequer a gostar.

chamo-me Gil Vicente e não gosto de ter medo
não gosto que me venham a recordar como uma pessoa com medo
enquanto subo ao Paço da Alcáçova, depois de ter passado pelas Hortas,
sou um homem inquieto
tenho diversas inquietações
desde já a inquietação de fazer um teatro que as pessoas vejam
e gostem
e vejam desde já fazer um teatro
que não é um teatro qualquer
que é o meu teatro —e por isso eu lhe chamo um teatro
(mas suponho que também podia chamar-lhe o teatro em vez de um
mas isso agora não interessa para nada,
gosto de palavras e da forma certa de as alinhar)  

não sei ainda que, mais de cinco séculos depois,
dois mais dois e um, e mais umas quantas décadas depois,
ainda vão fazer as minhas peças
que serei o cânone
acho que se chama um cânone,
(apesar de vir a acontecer uma exposição com esse nome da qual vou estar ausente e eu não suportaria saber isso
por isso prefiro que não mo digam)

não sei que serei cânone
mas se tivesse sabido
teria gostado
(ah, acabo de saber que afinal estou na tal exposição, só que como estava por ordem alfabética e me chamo Gil, demorei um bocadinho a chegar lá)

estou nervoso

chamo-me Gil Vicente e subo nervoso as escadas que levam até ela
quase seis séculos depois nunca vou saber que uma música da Suzanne Vega era precisamente sobre uma coisa parecida,
quer dizer, mais ou menos parecida
um soldado que subia umas escadas para chegar a casa de uma rainha
mas eu não sou esse soldado
eu sou Gil Vicente e escrevo teatro
e faço teatro
apesar de até hoje não ter feito teatro e do teatro português nem sequer existir
e um dia serei cânone,
(não, isto… nunca tinha ouvido esta música antes, isto não)
e até leio, não sei onde, que eu sou o pai disto tudo, não D’el rei D. João III, mas do teatro português,
imaginem, como se houvesse paternidade para isso
ou como se precisasse de haver —
o primeiro rei o primeiro lugar-berço da nação
a primeira obra de teatro português
o primeiro dramaturgo,
o ourives que deixou que as suas mãos se sujassem de tinta
que se apaixonou por essa tinta
que não mais a apagou das mãos,
um ourives no passado e bicho do teatro no presente,
(ok, eu não vou agora entrar em questões sobre se eu fui ou não fui ourives, eu deixo-vos com alguma coisa para vocês continuarem a discutir por muitos séculos).

as escadas tardam ou eu tardo em encontrá-las ou em ver-lhes o fim —
a porta dela, de Sua Exa. minha querida rainha, é que tarda,
que as escadas, essas sobram, não lhes vejo o fim.  

e nunca perceberei porque dizem que este não é um país de dramaturgos quando eu sou dramaturgo já nesta altura
(quer dizer, não se chamava assim, mas era isso que eu era)
e não vou estar lá no tempo do Berliner Ensemble (claro, isso foi na Alemanha, no século XX, com um tal de Brecht que eu gostaria de ter conhecido),
a ver os dramaturgistas a defender os dramaturgos
quem me dera um dramaturgista enquanto subia aquelas escadas a passos largos
tímidos
largos  

sem saber como a encontraria —  

eu que me farei anunciar sem anunciar
somente dois dias depois do parto
como quem aparece de surpresa
(chama-se teatro dentro do teatro, também fui eu que inaugurei isto):  

(bater à porta) 

Minha senhora?

T
ragotexto novo, posso entrar?

António Borges Coelho, "QUADROS PARA UMA VIAGEM A PORTUGAL NO SEC. XVI", Caminho (1986)
JOANA CRAVEIRO, “GIL VICENTE ÀS PORTAS DO SÉCULO XXI OU JÁ NO MEIO DELE”, INÉDITO (2021)