Tipóia, Travessa de S.Tomé

.... Fui de viela em viela
Numa delas, dei com ela
E quedei-me enfeitiçado
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A Lisboa das tipóias de praça, das carruagens cintilantes puxadas por cavalos de luxo, dos cocheiros empertigados (…) faz parte dum passado ilustre que já morreu e ainda roça por nós. Há vinte anos que Lisboa abandonou o trem pelo automóvel, o cavalo pelos cavalos, o bicho pela máquina. Modificou-se a nossa paisagem urbana. Desaparecida a tipóia, surgiu o táxi. (…) Mas as dificuldades da guerra actual fizeram parar, nas garagens, inúteis como caixotes vazios, os grandes automóveis cintilantes, os pequenos carros de cores vivas, e mesmo muitos táxis. Os motoristas, de um momento para o outro, caíram no desemprego. E a cidade, privada dos seus automóveis, apareceu de repente tão nua como uma sala sem móveis. As ruas parecem agora maiores, o espaço da cidade mais vasto. (…) E é nesta paisagem nova e inquietante que aparece, de caixa envernizada de preto e o rodado pintado de vermelho, uma velha tipóia ressuscitada! Uma tipóia de praça, guiada por um cocheiro que era “chauffeur”. Anda por aí como um fóssil vivo…

Era conhecido na parte oriental da cidade como “Elias do Táxi”. (…)
Trabalhava entre as cinco da tarde e a meia-noite. Fazia praça no Rossio e, muitas vezes, quando terminava o turno, refugiava-se nalgumas casas de fado. Os seus clientes eram sobretudo as figuras que preenchiam aquela época dourada: os poetas, os actores e os fadistas. (…) Nos anos 70, Elias passou a ser conhecido no meio artístico lisboeta, e todos o recebiam com enorme carinho.
A história mais conhecida talvez seja a do Ti’Alfredo. (…)
Altas horas. Elias, no final de mais um turno, deixou-se ficar parado dentro do táxi. O último passageiro ficara em Alfama. Tinha descido a Calçada de São Vicente, percorrido lentamente a Rua das Escolas Gerais e agora estava ali, suspenso e sossegado numa encruzilhada de tempo entre a Travessa de São Tomé e a Rua do Salvador, quando viu, ao cimo das Escadinhas de São Tomé, um homem de boina, gravata e óculos escuros. Quando se apercebeu de quem era, quis saltar do carro de imediato mas, nessa noite, a coragem não estava ao seu lado. Viu Alfredo Marceneiro apertar o casaco, virar costas e desaparecer pela Rua de São Tomé.
Elias gostava de escrever versos e sonhava que um dia alguém haveria de cantá-los. (…) Acendeu um cigarro, puxou um papel e esperou que a musa viesse enamorar-lhe os dedos. A meio do terceiro verso, ouviu bater no vidro.
—Por acaso não vai para o Bairro Alto, não? Era Alfredo Marceneiro. Elias ficou estarrecido. (…) Mal ensaiava uma resposta, já alguém batia no vidro do lado direito.
—O senhor também escreve em viagem? -a pergunta vinha agora de um menino, 4 anos, não mais. (…)
—Perdão? -retorquiu Elias. (…) De repente, Elias viu um clarão, como se o sol estivesse a pino e fossem já 11 horas da manhã. (…) nesse instante surge uma mulher muito magra e começa a falar para dentro da viatura.
—Abra, abra! O senhor desculpe, este rapaz prega-me com cada susto… Onde é que tu estavas? Se os teus pais sabem… Vamos lá embora que já estamos muito atrasados. A mulher abriu a porta de trás do automóvel e imediatamente deu passagem à criança.
—Mas olhe, espere lá! -interrompeu Elias. —Este cavalheiro aqui… Quando olhou para o lado esquerdo, Alfredo Marceneiro já lá não estava. A mulher e a criança entraram no carro e Elias ouviu a porta de trás fechar com muita força. E, antes que pudesse compreender fosse o que fosse, misteriosamente, a viatura começou a deslizar. —Mas o que é isto? O que é que se passa? (…)
—Ai! Tem toda a razão -respondeu a mulher. —Entrei e nem sequer me apresentei. É que estamos tão atrasados… O meu nome é Estefânia. Este é o José Saramago.
—Há-de ouvir falar muito de mim (…) —  Avance, avance, senhor, antes que a Irene nos veja! —  A Irene? (…) —  A Irene Lisboa, senhor. Se me apanha aqui, ainda acabo tuberculosa.
De súbito, ouviu um relinchar. (…) Como se de magia se tratasse, Elias estava afinal dentro de uma tipóia que parecia dirigir-se às Portas do Sol. “Talvez apanhe o Marceneiro mais à frente”, pensou. (…) Elias teve então a certeza de já não estar em controlo do seu destino. Encontrava-se agora dentro da própria poesia e, desta vez era Lisboa que o conduzia, levando-o, quem sabe, ao encontro de si próprio.

A Viela

Fui de viela em viela
Numa delas, dei com ela
E quedei-me enfeitiçado
Sob a luz dum candeeiro

Estava ali o fado inteiro
Pois toda ela era fado
 
Arvoreium ar gingão
Um certo ar fadistão


Que qualquer homem assume
E confesso que aguardei
Quando por ela passei

O convite do costume
 

Em vez disso, no entanto
No seu rosto só vi pranto
Só vi desgosto e descrença
Fui-me embora amargurado
Era fado, mas o fado

Não é sempre o que se pensa
 

Ainda recordo agora

A visão, que ao ir-me embora
Guardei da mulher perdida
A pena que me desgarra

Só me lembra uma guitarra
A chorar penas da vida

MARIA ARCHER, “TIPOS POPULARES: O COCHEIRO”, REVISTA MUNICIPAL (1941)
MARCO OLIVEIRA, “ELIAS DO TÁXI”, INÉDITO (2021)
Poema: Guilherme Pereira da Rosa | Música: Alfredo Marceneiro (Fado Cravo) | Intérprete: Alfredo Marce- neiro, “The Fabulous Marceneiro” (1960)