Era conhecido na parte oriental da cidade como “Elias do Táxi”. (…)
Trabalhava entre as cinco da tarde e a meia-noite. Fazia praça no Rossio e, muitas vezes, quando terminava o turno, refugiava-se nalgumas casas de fado. Os seus clientes eram sobretudo as figuras que preenchiam aquela época dourada:
os poetas, os actores
e os fadistas. (…) Nos anos 70, Elias passou a ser conhecido
no meio artístico lisboeta, e todos o recebiam
com enorme carinho.
A história mais conhecida talvez
seja a do Ti’Alfredo. (…)
Altas horas. Elias, no final de mais um turno, deixou-se
ficar parado dentro do táxi. O último passageiro ficara em Alfama. Tinha descido a Calçada de São Vicente, percorrido lentamente a Rua das Escolas Gerais e agora estava ali, suspenso e sossegado numa encruzilhada de tempo entre a Travessa de São Tomé
e a
Rua do Salvador, quando viu, ao cimo das Escadinhas de São
Tomé, um homem de boina, gravata e óculos escuros. Quando se apercebeu de quem era, quis saltar do carro de imediato mas, nessa noite, a coragem não estava ao seu lado. Viu Alfredo Marceneiro apertar o casaco, virar costas e desaparecer pela Rua de São Tomé.
Elias
gostava de escrever versos e sonhava que um dia alguém haveria de cantá-los. (…) Acendeu um cigarro,
puxou um papel e esperou que a musa viesse enamorar-lhe os dedos.
A meio do terceiro
verso, ouviu bater no vidro.
—Por acaso não vai para o Bairro Alto, não? Era Alfredo Marceneiro. Elias ficou estarrecido. (…)
Mal ensaiava uma resposta,
já alguém batia no vidro do lado direito.
—O senhor também
escreve em viagem?
-a pergunta vinha agora de um menino, 4 anos, não mais. (…)
—Perdão? -retorquiu Elias. (…)
De repente, Elias viu um clarão,
como se o sol estivesse
a pino e fossem já 11 horas
da manhã. (…) nesse instante surge uma mulher
muito magra e começa a falar para dentro da
viatura.
—Abra, abra! O senhor desculpe,
este rapaz prega-me com cada susto… Onde é que tu estavas?
Se os teus pais sabem… Vamos lá embora que já estamos muito atrasados.
A mulher abriu a porta de trás do automóvel
e imediatamente deu passagem à criança.
—Mas olhe, espere lá! -interrompeu Elias.
—Este cavalheiro aqui… Quando
olhou para o lado esquerdo, Alfredo Marceneiro já lá não
estava.
A mulher e a criança
entraram no carro e Elias ouviu a porta de trás fechar com muita força. E, antes que pudesse compreender fosse o que fosse, misteriosamente, a viatura começou a deslizar.
—Mas o que é isto?
O que é que se passa? (…)
—Ai!
Tem toda a razão -respondeu a mulher. —Entrei e nem sequer me apresentei. É que estamos
tão atrasados… O meu nome é Estefânia. Este é o José Saramago.
—Há-de ouvir falar
muito de mim (…)
— Avance, avance, senhor,
antes que a Irene nos veja!
— A Irene? (…)
— A Irene Lisboa,
senhor. Se me apanha
aqui, ainda acabo
tuberculosa.
De súbito, ouviu um relinchar. (…) Como se de magia se tratasse,
Elias estava afinal dentro de uma tipóia que parecia dirigir-se
às Portas do Sol. “Talvez apanhe o Marceneiro mais à frente”, pensou. (…) Elias teve então a certeza de já não estar em controlo
do seu destino. Encontrava-se agora
dentro da própria poesia e, desta vez era Lisboa que o conduzia, levando-o, quem sabe, ao encontro
de si próprio.
A Viela
Fui de viela em viela
Numa delas, dei com ela
E quedei-me enfeitiçado
Sob a luz dum candeeiro
Estava ali o fado inteiro
Pois toda ela era fado
Arvoreium ar gingão
Um certo ar fadistão
Que qualquer
homem assume
E confesso que aguardei
Quando por ela passei
O convite do costume
Em vez disso,
no entanto
No seu
rosto só vi pranto
Só vi desgosto
e descrença
Fui-me embora amargurado
Era fado, mas o fado
Não é sempre o que se pensa
Ainda recordo agora
A visão, que ao ir-me embora
Guardei da mulher perdida
A pena que me desgarra
Só me lembra
uma guitarra
A chorar penas da vida
MARIA
ARCHER, “TIPOS POPULARES: O COCHEIRO”, REVISTA MUNICIPAL (1941)
MARCO
OLIVEIRA, “ELIAS DO TÁXI”, INÉDITO
(2021)
Poema: Guilherme Pereira da Rosa | Música: Alfredo Marceneiro (Fado Cravo) | Intérprete: Alfredo Marce- neiro, “The Fabulous
Marceneiro” (1960)