Marias Madalenas

Só neste pequeno largo ainda vivem muitas, tantas, com suas vidas correntes, seus corações de pedra, suas mãos de sangue e de águas....

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Maria Madalena não viveu nesta rua baptizada com o seu nome, mas por ela já passaram milhares de Marias Madalenas, suas filhas, netas, bisnetas, descendentes directas desta deusa-mãe lisboeta.
Só neste pequeno largo ainda vivem muitas, tantas, com suas vidas correntes, seus corações de pedra, suas mãos de sangue e de águas.
Pedindo licença à Musa, vamos começar.

Vamos então começar a caminhar de olhos postos no chão — assim se descobrem as coisas mais inacreditáveis. Por exemplo, reparem: naquele último degrau da Igreja da Madalena estão sentadas duas personagens do livro Dádiva Divina, de Rui Zink. Conversa íntima… Ora escutem.
RUI ZINK, “DÁDIVA DIVINA” (2004)  Olá, Sam. Como te sentes? Obrigada, já estou melhor. (…) Tu és… imortal? Eu? Ah, não, Sam, que ideia. Ná, sou tão mortal como tu, só que… Só que? … duro um bocado mais de tempo do que a maioria das pessoas. Isso é verdade. Que idade tens? Duzentos anos? 106. Cento e seis anos, Sam. Faz-te confusão estares a dormir com uma mulher mais velha? (…) Se não és imortal, és o quê? Uma santa? Sam, por amor de Deus, não me faças rir… Vá lá, diz. Quente ou frio? Frio, frio. És o quê, então? Uma feiticeira? Gelado. Não se pode ser bruxa sem vassoura, sabes isso. Uma freira? Já está melhor. Morno. Mas ainda não acertaste. Desisto. És o quê, então? (…) Está bem, eu digo. Eu pertenço à irmandade de Maria Madalena. Então eu tinha razão. És uma freira.
Sam, não uso véu nem batina. Não sou freira. És o quê, então? É complicado. Tens vergonha? Um bocadinho. Queres mesmo saber? Quero. Bem, pertenço a esta irmandade que não usa hábito nem tem de fazer nada de especial, nada de muito religioso, pelo menos, mas que, segundo a lenda, descende em linha directa de… De?… Bem, como o nome indica, de Maria Madalena. Maria Madalena? Não era a… A companheira de Jesus, sim. A história não tem lá grande imagem dela. Parece que era… Já sei o que vais dizer, Sam. Não te quero ofender, Graça, mas… Podes dizer, Sam. Não me ofendo. Ela não era uma mulher de vida fácil? Uma mulher de vida difícil, Sam. Não digas de vida fácil. É um insulto dizer de vida fácil. Pronto, não pensava que fosses tão susceptível. Pensa bem. Gostavas que também dissessem mal da tua tetra-tetra-avó? Não gostavas, pois não? Nunca tinha visto desse ponto de vista…

ROMANCE DE MADALENA
ANTÓNIO DA FONSECA SOARES/FR.ANTÓNIO DAS CHAGAS (1631)   Música de Marco Oliveira

A lavar a roupa ao rio
vai Magdalena da praça

curta um tanto da vasquinha
Descalça pela calçada


Em que vai de pedra em pedra
leva os brancos pés com lama
Prata com lama parece

Telacom lama de prata.

O cargo leva a cabeça
De baixo as douradas tranças
quem do ouro faz rodilhas
Mal fará caso de nada.


Chega ao rio, que suspenso
Pasma, e de vê-la pára
Por ser ela mais corrente

que a mesma corrente d’água

Lava as delgadas camisas
que na calenda passada
Me pôs para não perdê-las
Não sei que sinal de nácar


De um gibão de riscadinho
Pega, donde a vista acha,
Tantos riscos no lavar,
Quantos, quando ela os lava.


É grande a carga de roupa
que a um tempo enxuga,
lava com por-lhe os olhos

com por-lhe as mãos faz alva

Lavandeira bela
De rosto tão lindo
O rio corrente

De vós se vai rindo
Lavai essa roupa
Lavandeira bela
Batei-a no peito

que é mais dura pedra