Vamos então começar a caminhar de olhos postos
no chão — assim se descobrem
as coisas mais inacreditáveis. Por exemplo, reparem: naquele
último degrau da Igreja da Madalena estão
sentadas duas personagens do livro Dádiva Divina,
de Rui Zink. Conversa íntima…
Ora escutem.
RUI ZINK, “DÁDIVA
DIVINA” (2004) Olá, Sam.
Como te sentes? Obrigada,
já estou melhor. (…)
Tu és… imortal?
Eu? Ah, não,
Sam, que ideia. Ná, sou
tão mortal como tu, só
que… Só que?
… duro um bocado mais de tempo do que a maioria das pessoas. Isso é verdade. Que idade tens? Duzentos anos?
106. Cento e seis anos,
Sam. Faz-te confusão
estares a dormir
com uma mulher
mais velha? (…)
Se não és imortal, és o quê? Uma santa? Sam, por amor de Deus, não me faças
rir… Vá lá, diz. Quente ou frio?
Frio, frio.
És o quê, então? Uma feiticeira?
Gelado. Não se pode ser bruxa sem vassoura,
sabes isso. Uma freira?
Já está melhor. Morno. Mas
ainda não acertaste. Desisto. És o quê, então?
(…)
Está bem, eu
digo. Eu pertenço à irmandade
de Maria Madalena. Então eu tinha
razão. És uma freira.
Sam, não uso véu nem batina.
Não sou freira. És o quê, então?
É complicado. Tens vergonha?
Um bocadinho. Queres mesmo saber? Quero.
Bem, pertenço a esta irmandade
que não usa hábito nem tem de fazer nada de especial,
nada de muito religioso, pelo menos, mas que, segundo a lenda, descende em linha directa de…
De?…
Bem, como o nome indica,
de Maria Madalena. Maria Madalena?
Não era a…
A companheira de Jesus,
sim.
A história não tem lá grande imagem dela. Parece que era… Já sei o que vais dizer, Sam.
Não te quero ofender, Graça, mas… Podes dizer, Sam. Não me ofendo. Ela não era uma mulher de vida fácil?
Uma mulher de vida
difícil, Sam. Não digas de vida
fácil. É um insulto dizer de vida fácil. Pronto,
não pensava que fosses tão susceptível.
Pensa bem. Gostavas que também dissessem mal da tua tetra-tetra-avó? Não gostavas, pois não?
Nunca tinha visto desse ponto de vista…
ROMANCE DE MADALENA
ANTÓNIO DA FONSECA
SOARES/FR.ANTÓNIO DAS CHAGAS
(1631)
Música de Marco Oliveira